São Paulo, domingo, 21 de julho de 2002

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GANÂNCIA INFECCIOSA

Negócios feitos pelo presidente com ações de empresas nos anos 80 e 90 não foram investigados

Mídia dos EUA escondeu fraudes de Bush


HAROLD EVANS


Por que as atividades do petroleiro George W. Bush nas décadas de 1980 e 1990 deveriam ser assunto de manchetes hoje é um mistério. O mistério não é o que realmente aconteceu. É claro que no caminho para ganhar cerca de US$ 16 milhões Bush burlou leis do mercado acionário, pisoteou direitos alheios e encontrou proteção entre os amigos de seu pai. Mas o verdadeiro mistério, e ele é tão importante numa democracia quanto o que Bush sabia e quando ele o soube, é algo que se consagrou através do "curioso incidente" do cão que despertou o interesse de Sherlock Holmes em "Silver Blaze". "Mas o cachorro não fez nada", protestou Watson. "Mas aí é que está a questão", disse Holmes: "Por que o cachorro não latiu na noite do assassinato?"
O "curioso incidente" em relação aos negócios obscuros com ações feitos pelo presidente é por que o cão de guarda da mídia não "latiu" durante a eleição presidencial de 2000, quando surgiram novas evidências desfavoráveis um mês antes da eleição. Mesmo hoje essa não é uma questão que a mídia esteja interessada em investigar, o que no mínimo demonstra um talento consistente para a inércia. De fato, se hoje há um esforço entre os mais omissos é para encobrir sua inépcia, reinterpretando o que fizeram ou sugerindo que a história não tem grande importância, de qualquer modo, e nunca teve.
Em 1991 soube-se que Bush, quando era diretor da Harken Energy, fez uma venda privilegiada de ações da companhia em junho de 1990. Ele descarregou mais de 200 mil ações por US$ 848.560 pouco antes de a empresa divulgar um prejuízo trimestral de US$ 23 milhões e suas ações despencarem. A história é que um investidor institucional -uma fada madrinha sem nome com um dom para o momento certo- ligou para o corretor de Bush exatamente no momento em que ele precisava de US$ 600 mil para uma participação minoritária nos Texas Rangers. Foi essa participação que ele vendeu em 98 por US$ 16 milhões. A Comissão de Valores Mobiliários (SEC), ao examinar o negócio, não fez qualquer acusação.
Mas isso foi naquela época. Durante a eleição presidencial, uma investigação mais completa foi realizada por um grupo de jornalistas num momento em que Bush dizia que iria dirigir a Casa Branca como uma empresa. Os repórteres concluíram que o modelo empresarial do candidato era desconfortavelmente próximo das práticas empresariais que atualmente causam tanto escândalo. Mas o público não pôde pesar essa conclusão antes de votar para presidente porque a imprensa deixou de divulgar os fatos.
As revelações, em parte baseadas em documentos obtidos por força da Lei de Liberdade de Informação, foram publicadas na revista "Talk" um mês antes da eleição. (Declaro que aqui tenho certo interesse, pois a revista era editada por minha mulher, Tina Brown). A reportagem foi obra de dois repórteres da revista, Bill Minutaglio e Nancy Beiles. Eis o que eles relataram:
Primeiro, Bush tinha feito não apenas uma, mas quatro transações com ações da Harken, no valor de mais de US$ 1 milhão, entre a época em que entrou para o conselho da empresa e o início da investigação da SEC.
Segundo, Bush teve acesso a mais informações [do que se relatara anteriormente" de que a Harken estava falindo financeiramente na época em que ele se livrou da maior parte de suas ações, em 22 de junho de 1990. A SEC nunca questionou a declaração de Bush de que ele não fazia idéia de que a empresa estivesse enfrentando dificuldades. Mas a "Talk" citou documentos mostrando que Bush tinha sido advertido de que a companhia passava por graves problemas financeiros pelo menos duas vezes no mês em que ele efetuou as vendas.
Os repórteres também mostraram que Bush e seus colegas diretores da Harken realizaram manobras contábeis que são uma imagem espelhada das práticas de seus amigos na hoje infame Enron. Como não desejava divulgar prejuízos maiores que os esperados para 89, a Harken vendeu 80% de uma de suas subsidiárias, a Aloha Petroleum, para um grupo de pessoas com acesso a informação privilegiada da Harken por um preço inflado -transação que mascarou as perdas e impulsionou o preço das ações quando eles venderam suas participações pessoais. Meses depois de Bush vender suas ações, a SEC ordenou que a Harken refizesse seu balanço para refletir um prejuízo líquido de US$ 12,5 milhões em 1989, quatro vezes mais do que o divulgado originalmente.
A reportagem da "Talk" revelou novos detalhes sobre as práticas que Bush e seus parceiros de beisebol do Texas Rangers usaram para explorar o poder do Estado e se apossar de 110 hectares de terras particulares em Arlington, cuja maior parte não se destinava ao novo estádio, mas à especulação comercial privada. Isso era muito diferente de sua promessa de "fazer o possível para defender o poder da propriedade privada e os direitos de propriedade privada".
Tudo isso e mais, incluindo as ligações da família Bush com a SEC, eram material incendiário na corrida para a eleição de 2000. Surpreendentemente, tudo foi ignorado. A imprensa de elite, notadamente "New York Times", "Washington Post", "Wall Street Journal" e outros, juntamente com os grandes noticiários na televisão e no rádio e as principais revistas, deixaram de divulgar as revelações sobre a Harken.
Não é que as fontes das notícias não tenham se esforçado para chamar a atenção. O Centro para Integridade Pública emitiu um comunicado de imprensa e colocou a história em seu site; o mesmo fez a "Talk". A campanha de Gore distribuiu informes. Nada. Ninguém assumiu o desafio.
Por quê? Porque uma imprensa que durante anos chicoteou o cavalo morto de Whitewater ficou tão indiferente a uma história maior e mais recente? Por que ela não investigou, mesmo que fosse para desmentir as alegações?
Três motivos se apresentam, nenhum deles edificante. A eleição de 2000 foi notória pela maneira como os principais repórteres se limitaram a uma narrativa totalmente impermeável às verdadeiras notícias: a narrativa de que Gore era um fanfarrão e um afetado, e Bush era um amável Forrest Gump. Qualquer coisa que não se encaixasse no padrão preconcebido tinha pequena probabilidade de ser impressa ou veiculada. Durante toda a campanha os repórteres políticos e seus editores estiveram geralmente menos preocupados com a integridade de Bush do que com a preferência de Gore por roupas em tons de terra.
Em segundo lugar, eles foram ávidos por versões quando os diretores da campanha republicana habilmente forneceram o material necessário para manter vivo o estereótipo de Gore.
Finalmente, sem dúvida houve um elemento de preconceito pessoal e político contra Clinton e Gore. O então diretor da CNN disse que a rede "não sonharia em tocar" na história; isso seria injusto com Bush, tão perto da eleição. Era de se esperar que a página editorial com viés direitista do "Wall Street Journal" mostrasse uma preocupação semelhante por seu candidato, mas nesse caso a solicitude parece ter-se estendido para as páginas de notícias.
É claro que ainda há perguntas não respondidas. Talvez existam ótimas explicações em documentos não examinados. O próprio presidente Bush agora lembrou que talvez a SEC não tenha perdido seus documentos, como ele afirmou em 1991. Hoje seu porta-voz da Casa Branca culpa "uma confusão dos advogados", e o próprio Bush disse: "Ainda não entendi isso totalmente". Ele poderia perguntar ao homem que o representou na investigação da SEC, um certo Robert Jordan, que hoje é seu embaixador na Arábia Saudita. Melhor ainda, divulgar todos os seus documentos e explicar nesse contexto o que ele quer dizer com: "No mundo corporativo, algumas coisas não são exatamente preto no branco".
Nenhum dos oligarcas da imprensa que falhou perante o público em 2000 admitiu sua falha ou organizou uma retratação adequada. Ninguém ainda perguntou sobre os outros processos posteriores e nem se incomodou em registrá-los. Não é preciso muita criatividade para imaginar o furor da mídia se esses detalhes tivessem surgido sobre Clinton e Whitewater. Mas o "Washington Post", que perseguiu Clinton com tanto zelo, ainda pede que o Congresso e outros na imprensa não se deixem "distrair" pela Harken. O "New York Times", na pessoa do colunista Paul Krugman, está mostrando uma preocupação retardada, mas nada da energia desenfreada que manifestou em relação a Whitewater. "The Wall Street Journal" deu uma versão incorreta de sua própria negligência, reivindicando num editorial em 10 de julho uma vigilância que jamais exibiu na época.
Sim, é claro, deveríamos saber disso; os escândalos econômicos são sempre culpa do mau exemplo dos democratas. Aquela chupada [referência ao escândalo sexual que envolveu Clinton", você pode acreditar, destruiu a fibra moral de uma geração de empresários americanos e, ao que parece, o senso de prioridade dos melhores profissionais da imprensa.


Harold Evans foi editor do "Sunday Times" e do "Times" de Londres. Também é autor de "The American Century". Este artigo foi publicado originalmente no "Observer" de Londres.


Tradução de Luiz Roberto Gonçalves


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