São Paulo, domingo, 21 de julho de 2002

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ANÁLISE/ESTADOS UNIDOS

O declínio do império americano

IMMANUEL WALLERSTEIN


Os Estados Unidos estão em declínio? Poucas pessoas hoje acreditariam nessa afirmativa. Para o cientista político Immanuel Wallerstein, 71, professor da Universidade Yale, na verdade os Estados Unidos estão deixando de ser uma potência mundial desde a década de 70. Em sua visão, a reação americana aos ataques terroristas simplesmente acelerou o declínio que já vinha de antes. Wallerstein mostra por que a "Pax Americana" está desbotando com um exame da geopolítica do século 20, particularmente as últimas três décadas. Esse exercício revela uma simples e inescapável conclusão: os fatores econômicos, políticos e militares que contribuíram para a hegemonia dos Estados Unidos são os mesmos que inexoravelmente produzirão seu declínio.

A ascensão dos Estados Unidos à hegemonia global foi um longo processo que começou de fato com a recessão mundial de 1873. Naquela época, os Estados Unidos e a Alemanha começaram a adquirir uma parcela crescente dos mercados globais, principalmente à custa da contínua recessão da economia britânica. Ambos os países tinham recentemente conquistado uma base política estável: os Estados Unidos ao encerrar com sucesso a Guerra Civil e a Alemanha alcançando a unificação e derrotando a França na Guerra Franco-Prussiana.
De 1873 a 1914, os Estados Unidos e a Alemanha tornaram-se os principais produtores em certos setores chaves: aço e mais tarde automóveis nos Estados Unidos; química industrial na Alemanha.
Os livros de história registram que a Primeira Guerra Mundial irrompeu em 1914 e terminou em 1918, e que a Segunda Guerra Mundial durou de 1939 a 1945. No entanto, é mais sensato considerar as duas como uma única e contínua "guerra de 30 anos" entre os Estados Unidos e a Alemanha, com tréguas e conflitos locais espalhados entre elas.
A competição para a sucessão hegemônica assumiu um teor ideológico em 1933, quando os nazistas chegaram ao poder na Alemanha e iniciaram sua empreitada para transcender totalmente o sistema global, não buscando a hegemonia dentro do sistema vigente, mas sobretudo uma forma de império global. Lembre-se do slogan nazista "ein tausendjähriges Reich" (um império de mil anos). Por sua vez, os Estados Unidos assumiram o papel de defensores do liberalismo centrista mundial -lembre-se das "quatro liberdades" do ex-presidente americano Franklin D. Roosevelt (liberdade de expressão, de religião, da necessidade e do medo)- e entraram numa aliança estratégica com a União Soviética, possibilitando a derrota da Alemanha e seus aliados.
A Segunda Guerra Mundial resultou numa enorme destruição de infra-estrutura e de populações por toda a Eurásia, do oceano Atlântico ao Pacífico, e quase nenhum país ficou imune. A única grande potência industrial do mundo que saiu intacta e até muito reforçada, sob uma perspectiva econômica, foram os Estados Unidos, que agiram rapidamente para consolidar sua posição.
Mas a aspiração à hegemonia enfrentou alguns obstáculos políticos práticos. Durante a guerra, as potências aliadas concordaram com a fundação das Nações Unidas, composta basicamente pelos países que participaram da coalizão contra as potências do Eixo. A característica crítica da organização era o Conselho de Segurança, a única estrutura que poderia autorizar o uso da força. Como a Carta da ONU deu o direito de veto a cinco potências, incluindo os Estados Unidos e a União Soviética, o conselho ficou de modo geral sem efeito prático. Assim, não foi a fundação das Nações Unidas em abril de 1945 que determinou as limitações geopolíticas da segunda metade do século 20, mas, sim, o encontro em Ialta entre Roosevelt, o primeiro-ministro britânico Winston Churchill e o líder soviético Josef Stálin, dois meses antes.
Os acordos formais de Ialta foram menos importantes do que os acordos informais tácitos, que só podem ser avaliados observando o comportamento dos Estados Unidos e da União Soviética nos anos seguintes. Quando a guerra terminou na Europa, em 8 de maio de 1945, tropas soviéticas e ocidentais (isto é, americanas, britânicas e francesas) estavam situadas em determinados locais, basicamente acompanhando uma linha no centro da Europa, que passou a ser chamada de Linha Oder-Neisse. Exceto por alguns pequenos ajustes, elas permaneceram lá. Em retrospectiva, Ialta significou um acordo entre ambos os lados de que elas poderiam ficar lá e que nenhum lado usaria a força para expulsar o outro. Esse acordo tácito também se aplicava à Ásia, como provam a ocupação do Japão pelos Estados Unidos e a divisão da Coréia. Politicamente, portanto, Ialta foi um acordo sobre o status quo em que a União Soviética controlava cerca de um terço do mundo e os Estados Unidos, o restante.
Washington também enfrentou desafios militares mais sérios. A União Soviética tinha as maiores forças terrestres do mundo, enquanto o governo americano enfrentava pressão doméstica para reduzir seu Exército, particularmente abolindo o recrutamento obrigatório.
Os Estados Unidos, portanto, decidiram afirmar seu poderio militar não por meio de forças terrestres, mas por meio do monopólio das armas nucleares (e uma força aérea capaz de transportá-las). Esse monopólio logo desapareceu: em 1949, a União Soviética também tinha desenvolvido armas nucleares.
Desde então, os Estados Unidos ficaram reduzidos a tentar evitar a aquisição de armas nucleares (e armas químicas e biológicas) por outras potências, uma iniciativa que no século 21 não parece ter grande sucesso.

Até 1991, os Estados Unidos e a União Soviética coexistiram no "equilíbrio do terror" da Guerra Fria. Essa situação foi testada cegamente apenas três vezes: no bloqueio de Berlim, em 1948-49, na Guerra da Coréia, em 1950-53, e na crise dos mísseis cubanos, em 1962. O resultado em cada caso foi a restauração do status quo. Além disso, veja que sempre que a União Soviética enfrentou uma crise política em seus regimes satélites -Alemanha Oriental em 1953, Hungria em 1956, Tchecoslováquia em 1968 e Polônia em 1981-, os Estados Unidos praticaram pouco mais que exercícios de propaganda, permitindo que a União Soviética agisse como melhor lhe conviesse.
É claro que essa passividade não se estendia à área econômica. Os Estados Unidos capitalizaram o ambiente da Guerra Fria para lançar iniciativas maciças de reconstrução econômica, primeiro na Europa Ocidental e depois no Japão (assim como na Coréia do Sul e em Taiwan). O raciocínio era óbvio: de que servia ter uma superioridade produtiva tão avassaladora se o resto do mundo não representasse uma demanda efetiva?
Além disso, a reconstrução econômica ajudava a criar obrigações clientelistas por parte dos países que recebiam ajuda americana; esse sentido de obrigação promovia a disposição para entrar em alianças militares e, ainda mais importante, à subserviência política.
Finalmente, não se deve subestimar o componente ideológico e cultural da hegemonia americana. O período imediatamente após 1945 pode ter sido o auge histórico da popularidade da ideologia comunista. É fácil esquecer hoje as amplas votações obtidas por partidos comunistas em eleições livres em países como Bélgica, França, Itália, Tchecoslováquia e Finlândia, sem falar no apoio que os partidos comunistas obtiveram na Ásia -Vietnã, Índia, Japão- e por toda a América Latina. E isso ainda deixa de fora áreas como China, Grécia e Irã, onde as eleições livres ficaram ausentes ou foram restritas, mas onde os partidos comunistas gozavam de um apelo generalizado. Em reação, os Estados Unidos mantiveram uma maciça ofensiva ideológica anticomunista.
Em retrospectiva, essa iniciativa parece amplamente bem-sucedida: Washington exibiu seu papel como líder do "mundo livre" de modo pelo menos tão eficaz quanto a União Soviética exibia sua atitude de líder do campo "progressista" e "antiimperialista".

O sucesso dos Estados Unidos como potência hegemônica no período pós-guerra criou as condições para o colapso hegemônico do país. Esse processo é captado por quatro símbolos: a Guerra do Vietnã, as revoluções de 1968, a queda do Muro de Berlim em 1989 e os atentados terroristas de setembro de 2001. Cada símbolo se ergueu sobre o anterior, culminando na situação em que os Estados Unidos se encontram hoje: uma superpotência solitária, que carece de verdadeiro poder, um líder mundial que ninguém segue e poucos respeitam e um país que flutua perigosamente em meio ao caos global que não pode controlar.
O que foi a Guerra do Vietnã? Principalmente foi o esforço do povo vietnamita para pôr fim ao domínio colonial e estabelecer seu próprio Estado. Os vietnamitas combateram os franceses, os japoneses e os americanos e no final os vietnamitas venceram -uma grande realização, na verdade. Do ponto de vista geopolítico, porém, a guerra representou a rejeição ao status quo de Ialta por populações então rotuladas como Terceiro Mundo. O Vietnã tornou-se um símbolo muito poderoso, porque Washington foi suficientemente tola para investir todo o seu poderio militar na luta e, ainda assim, os Estados Unidos perderam. É verdade que os Estados Unidos não utilizaram armas nucleares (decisão que certos grupos míopes de direita muito criticaram), mas esse uso teria destroçado os acordos de Ialta e poderia ter produzido um holocausto nuclear, resultado que os Estados Unidos simplesmente não poderiam arriscar.
Mas o Vietnã não foi simplesmente uma derrota militar ou uma maldição para o prestígio americano. A guerra aplicou um grande golpe contra a capacidade de os Estados Unidos continuarem sendo a potência econômica dominante no mundo. O conflito foi extremamente caro e praticamente esgotou as reservas de ouro dos Estados Unidos, que vinham sendo tão abundantes desde 1945.
Além disso, os Estados Unidos enfrentaram esses gastos exatamente quando a Europa Ocidental e o Japão experimentavam grandes surtos econômicos. Essas condições puseram fim à predominância americana na economia global.
Desde o final dos anos 60, membros dessa tríade têm sido praticamente equivalentes econômicos, cada um se saindo melhor durante alguns períodos, mas nenhum se distanciando muito dos outros.
Quando as revoluções de 1968 irromperam em todo o mundo, o apoio aos vietnamitas tornou-se um importante componente retórico. "Um, dois, muitos Vietnãs" e "Ho, Ho, Ho Chi Minh" foram entoados em muitas ruas, inclusive nos Estados Unidos. Mas a geração de 68 não condenava apenas a hegemonia americana. Condenava a conivência soviética com os Estados Unidos, condenava Ialta e usou ou adaptou a linguagem dos revolucionários culturais chineses, que dividiram o mundo em dois campos: as duas superpotências e o resto do mundo.
A denúncia da conivência soviética levou logicamente à denúncia das forças nacionais intimamente aliadas à União Soviética, o que na maioria dos casos significava os partidos comunistas tradicionais. Mas os revolucionários de 1968 também atacaram outros componentes da Velha Esquerda -os movimentos de libertação nacional no Terceiro Mundo, os movimentos social-democratas na Europa e os democratas do New Deal nos Estados Unidos, acusando-os também de conivência com o que os revolucionários chamavam genericamente de "imperialismo americano".
O ataque à conivência soviética com Washington, mais o ataque contra a Velha Esquerda, enfraqueceu ainda mais a legitimidade dos acordos de Ialta sobre os quais os Estados Unidos tinham moldado a ordem mundial. Ele também minava a posição do liberalismo centrista como a única e legítima ideologia global. As consequências políticas diretas das revoluções mundiais de 68 foram mínimas, mas as repercussões geopolíticas e intelectuais foram enormes e irrevogáveis. O liberalismo de centro caiu do trono que tinha ocupado desde as revoluções européias de 1848 e que havia permitido que ele incluísse tanto conservadores quanto radicais. Essas ideologias retornaram e mais uma vez representaram uma verdadeira gama de opções. Os conservadores se tornariam novamente conservadores, e os radicais, radicais. Os liberais de centro não desapareceram, mas foram reduzidos. Nesse processo, a posição ideológica oficial dos Estados Unidos -antifascista, anticomunista, anticolonialista- parecia frágil e inconvincente para uma porção cada vez maior das populações mundiais.

O início da estagnação econômica internacional na década de 70 teve duas consequências importantes para o poderio americano. Primeiro, a estagnação resultou no colapso do "desenvolvimentismo", a idéia de que cada país poderia avançar economicamente se o Estado tomasse medidas adequadas, que era a principal reivindicação ideológica dos movimentos da Velha Esquerda então no poder.
Um após outro, esses regimes enfrentaram distúrbios internos, o declínio dos padrões de vida, uma dívida crescente, a dependência das instituições financeiras internacionais e a erosão de sua credibilidade. O que nos anos 60 parecia ser uma navegação bem-sucedida da descolonização do Terceiro Mundo pelos Estados Unidos, minimizando as rupturas e maximizando a suave transferência de poder para regimes que eram desenvolvimentistas, mas muito pouco revolucionários, deu lugar à desintegração da ordem, ao descontentamento fervilhante e a temperamentos radicais não canalizados.
Quando os Estados Unidos tentaram intervir, fracassaram. Em 1983, o presidente Ronald Reagan mandou tropas para o Líbano para restaurar a ordem. As tropas na verdade foram praticamente expulsas. Ele compensou invadindo Granada, um país sem tropas.
O presidente George Bush invadiu o Panamá, outro país sem tropas. Mas, depois, interveio na Somália para restaurar a ordem, e os Estados Unidos foram na verdade expulsos de modo um tanto ignominioso. Como havia pouco que o governo americano realmente pudesse fazer para inverter a tendência de declínio da hegemonia, ele preferiu simplesmente ignorar essa tendência, uma política que prevaleceu desde a retirada do Vietnã até 11 de setembro de 2001.


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