São Paulo, domingo, 21 de julho de 2002

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ANÁLISE/WALLERSTEIN

Uma hipótese para a impotência dos EUA

Enquanto isso, os verdadeiros conservadores começaram a assumir o controle de países-chave e instituições internacionais. A ofensiva neoliberal dos anos 80 foi marcada pelos regimes Thatcher e Reagan e pelo surgimento do FMI (Fundo Monetário Internacional) como um ator-chave no cenário mundial. Antes (por mais de um século), as forças conservadoras tinham tentado se retratar como liberais mais sensatas. Agora, os liberais de centro eram obrigados a argumentar que eram conservadores mais eficazes.
Os programas conservadores eram claros. No plano doméstico, os conservadores tentavam implementar políticas que reduzissem o custo do trabalho, minimizando as restrições ambientais aos produtores e cortando os benefícios do bem-estar estatal. Os verdadeiros sucessos foram modestos, por isso os conservadores passaram então a atuar vigorosamente na arena internacional.
As reuniões do Fórum Econômico Mundial em Davos forneceram um campo de encontro para as elites e a mídia. O FMI representava um clube para ministros das Finanças e banqueiros centrais. E os Estados Unidos pressionaram pela criação da Organização Mundial do Comércio, para promover os livres fluxos comerciais pelas fronteiras mundiais.
Enquanto os Estados Unidos não estavam olhando, a União Soviética desmoronava. Sim, Ronald Reagan tinha chamado a União Soviética de "império do mal" e usou a retórica bombástica de pedir a destruição do Muro de Berlim, mas os Estados Unidos realmente não pretendiam e certamente não foram responsáveis pela queda da União Soviética. Na verdade, a União Soviética e sua zona imperial no Leste Europeu desabaram devido à desilusão popular com a velha esquerda, em combinação com as iniciativas do líder soviético Mikhail Gorbatchov para salvar seu regime, liquidando Ialta e instituindo a liberalização interna (perestroika mais glasnost). Gorbatchov conseguiu liquidar Ialta, mas não salvar a União Soviética (embora quase o tenha conseguido, deve-se dizer).
Os Estados Unidos ficaram surpresos e atônitos com o súbito colapso, sem saber como lidar com as consequências. O colapso do comunismo na verdade significou o colapso do liberalismo, removendo a única justificativa ideológica por trás da hegemonia americana, uma justificativa tacitamente apoiada pelo adversário ideológico ostensivo do liberalismo. Essa perda de legitimidade levou diretamente à invasão do Kuait pelo Iraque, que o líder iraquiano Saddam Hussein jamais teria ousado se os acordos de Ialta continuassem vigentes.
Em retrospectiva, as iniciativas americanas na Guerra do Golfo conseguiram uma trégua basicamente na própria linha de partida. Mas uma potência hegemônica pode se satisfazer com um empate numa guerra com um poder regional mediano? Saddam demonstrou que era possível entrar numa briga com os Estados Unidos e sair inteiro. Ainda mais que a derrota no Vietnã, o desafio ousado de Saddam comeu as entranhas da direita americana, particularmente as dos chamados falcões, o que explica o fervor de seu atual desejo de invadir o Iraque e destruir seu regime.

Entre a Guerra do Golfo e 11 de setembro de 2001, as duas principais arenas de conflito mundial foram os Bálcãs e o Oriente Médio. Os Estados Unidos exerceram importante papel diplomático em ambas as regiões. Olhando para trás, quão diferentes seriam os resultados se os Estados Unidos tivessem assumido uma posição totalmente isolacionista? Nos Bálcãs, um Estado multinacional economicamente bem-sucedido (Iugoslávia) desmoronou, basicamente em suas partes componentes. Durante dez anos, a maioria dos Estados resultantes iniciou um processo de etnificação, experimentando uma violência brutal, amplas violações de direitos humanos e guerras. A intervenção externa, em que os Estados Unidos atuaram de modo proeminente, trouxe uma trégua e pôs fim à violência mais evidente, mas essa intervenção de modo nenhum reverteu a etnificação, que hoje está consolidada e de certa forma legitimada.
Esses conflitos teriam terminado de modo diferente sem o envolvimento americano? A violência poderia ter continuado por mais tempo, mas os resultados básicos provavelmente não teriam sido muito diferentes. O quadro é ainda mais grave no Oriente Médio, onde o envolvimento dos Estados Unidos foi mais profundo, e seus fracassos, mais espetaculares. Nos Bálcãs e no Oriente Médio igualmente, os Estados Unidos deixaram de exercer seu poder hegemônico com eficácia não por falta de vontade ou de esforço, mas por falta de verdadeiro poder.

Então veio o 11 de setembro, o choque e a reação. Sob o fogo dos legisladores americanos, a CIA (Agência Central de Inteligência, na sigla em inglês) hoje afirma que havia advertido o governo Bush sobre possíveis ameaças. Mas, apesar do enfoque da CIA sobre a Al Qaeda e a perícia da inteligência do órgão, ele não pôde prever (e portanto evitar) a execução dos ataques terroristas. É o que afirmaria o diretor da CIA, Robert Tenet. Esse depoimento dificilmente pode tranquilizar o governo ou o povo americanos.
Seja o que for que os historiadores decidam, os atentados de 11 de setembro de 2001 representaram um grande desafio ao poderio americano. As pessoas responsáveis não representavam uma grande potência militar. Eram membros de uma força não-estatal, com alto grau de determinação, algum dinheiro, um grupo de seguidores dedicados e uma forte base em um Estado fraco. Em suma, não eram nada militarmente. No entanto, tiveram sucesso em um ataque ousado em solo americano.
George W. Bush chegou ao poder criticando muito o trabalho do governo Clinton nos assuntos externos. Bush e seus assessores não o admitiram, mas sem dúvida estavam conscientes de que o caminho de Clinton tinha sido o de todo presidente americano desde Gerald Ford, incluindo os de Ronald Reagan e George Bush pai. E tinha sido até o caminho do atual governo Bush antes do 11 de setembro. Basta olhar como Bush tratou o caso da derrubada do avião americano na China em abril de 2001 para ver que prudência era o nome do jogo.

Depois dos atentados terroristas, Bush mudou de rumo, declarando guerra ao terrorismo, garantindo ao povo americano que "o resultado é certo" e informando ao mundo que "ou estão do nosso lado ou estão contra nós".
Há muito frustrados até mesmo pelos mais conservadores governos americanos, os falcões finalmente passaram a dominar a política americana. Sua posição é clara: os Estados Unidos detêm um poderio militar avassalador e, embora inúmeros líderes estrangeiros considerem insensato Washington aplicar sua força militar, esses mesmos líderes não podem fazer e não farão qualquer coisa se os Estados Unidos simplesmente impuserem sua vontade ao resto. Os falcões acreditam que os Estados Unidos devem agir como uma potência imperial por dois motivos: primeiro, os Estados Unidos podem fazer isso; e, segundo, se Washington não exercer sua força, os Estados Unidos se tornarão cada vez mais marginalizados.
Hoje essa posição dos falcões tem três expressões: o ataque militar no Afeganistão, o apoio de fato à tentativa israelense de liquidar a Autoridade Palestina e a invasão do Iraque, que estaria em fase de preparativos militares. Menos de um ano depois dos atentados terroristas de setembro de 2001, talvez seja cedo demais para avaliar qual será o resultado dessas estratégias.
Até agora, esses esquemas levaram à derrubada dos taliban no Afeganistão (sem o desmantelamento completo da Al Qaeda ou a captura de sua liderança); enorme destruição na Palestina (sem tornar "irrelevante" o líder palestino Iasser Arafat, como queria o primeiro-ministro israelense, Ariel Sharon); e a forte oposição dos aliados dos Estados Unidos na Europa e no Oriente Médio aos planos de invasão do Iraque.
A leitura dos fatos recentes pelos falcões enfatiza que a oposição às ações americanas, embora séria, continua principalmente verbal. Nem a Europa Ocidental nem a Rússia, a China ou a Arábia Saudita parecem dispostas a romper seriamente os laços com os Estados Unidos. Em outras palavras, os falcões acreditam que Washington realmente conseguiu se safar. Os falcões supõem que um resultado semelhante ocorrerá quando os militares americanos realmente invadirem o Iraque e, depois, quando os Estados Unidos exercerem sua autoridade em outras partes do mundo, seja no Irã, na Coréia do Norte, na Colômbia ou talvez na Indonésia.
Ironicamente, a leitura dos falcões tornou-se de modo geral a leitura da esquerda internacional, que vem gritando contra as políticas americanas principalmente por temer que as probabilidades de sucesso dos EUA sejam altas. Mas as interpretações dos falcões estão erradas e apenas contribuíram para o declínio dos EUA, transformando uma descida gradual numa queda muito mais rápida e turbulenta. Especificamente, as abordagens dos falcões vão fracassar por motivos militares, econômicos e ideológicos.
Sem dúvida, os militares continuam sendo a carta mais forte dos EUA; na verdade, a única carta. Hoje os Estados Unidos possuem o mais formidável aparato militar do mundo. E, a se acreditar nas alegações de novas e incomparáveis tecnologias militares, a vantagem americana sobre o resto do mundo é consideravelmente maior hoje do que uma década atrás. Mas então isso significa que os EUA podem invadir o Iraque, conquistá-lo rapidamente e instalar um regime amigo e estável? É improvável. Tenha-se em mente que, das três guerras sérias que os EUA lutaram desde 1945 (Coréia, Vietnã e Golfo), uma terminou em derrota e duas em retirada após o que poderia ser chamado de "empate" -não é exatamente um registro glorioso.
O Exército de Saddam não é o dos taliban e o controle interno de seus militares é muito mais coeso. Uma invasão americana necessariamente envolveria uma importante força em terra, que teria de abrir caminho até Bagdá e provavelmente sofreria baixas significativas. Essa força também precisaria de bases de onde partiria para as lutas e a Arábia Saudita deixou claro que não ajudará nesse sentido. O Kuait ou a Turquia ajudarão? Talvez, se Washington usar todas as suas fichas.
Enquanto isso, pode-se esperar que Saddam utilize todas as armas à sua disposição e é exatamente o que inquieta o governo americano: que essas armas possam ser muito malignas. Os EUA podem torcer os braços dos regimes da região, mas o sentimento popular vê todo o negócio como o reflexo de um profundo viés antiárabe nos EUA. Esse conflito pode ser vencido? O Estado-Maior britânico aparentemente já informou ao primeiro-ministro Tony Blair que não acredita nisso.
E sempre há a questão das "segundas frentes". Depois da Guerra do Golfo, as Forças Armadas americanas tentaram se preparar para a possibilidade de duas guerras regionais simultâneas. Depois de algum tempo, o Pentágono abandonou silenciosamente a idéia, por ser impraticável e dispendiosa. Mas quem pode ter certeza de que nenhum potencial inimigo atacará quando os EUA estiverem atolados no Iraque?
Considere também a questão da tolerância popular americana às não-vitórias. Os americanos pairam entre um fervor patriótico que apóia todos os presidentes em tempo de guerra e um profundo impulso isolacionista. Desde 1945, o patriotismo se chocou com um muro sempre que as baixas aumentaram. Por que a reação seria diferente hoje? E, mesmo que os falcões (quase todos civis) se sintam impermeáveis à opinião pública, os generais americanos, queimados pelo Vietnã, não se sentem.

E a frente econômica? Nos anos 80, inúmeros analistas americanos ficaram histéricos quanto ao milagre econômico japonês. Eles se acalmaram nos anos 90, diante das conhecidas dificuldades financeiras do Japão. Mas, depois de exagerar nas declarações sobre como o Japão estava avançando rapidamente, as autoridades americanas hoje parecem complacentes, confiantes de que o Japão está muito atrás. Hoje em dia, Washington parece mais inclinada a mostrar aos formuladores de políticas japoneses o que eles estão fazendo errado.
Esse triunfalismo dificilmente parece garantido. Considere a seguinte reportagem do "New York Times" de 20 de abril passado: "Um laboratório japonês construiu o computador mais rápido do mundo, uma máquina tão poderosa que se equipara ao poder de processamento dos 20 mais rápidos computadores americanos juntos e supera de longe o líder anterior, uma máquina construída pela IBM. A conquista [..." é a evidência de que a corrida tecnológica, que a maioria dos engenheiros americanos pensava estar vencendo facilmente, está longe de terminar".
A análise continua, comentando que há "prioridades científicas e tecnológicas contrastantes" nos dois países. A máquina japonesa foi construída para analisar mudanças climáticas, mas as máquinas americanas são desenhadas para simular armas.
Esse contraste personifica a história mais antiga na história das potências hegemônicas. O poder dominante se concentra nos militares (em seu detrimento); o candidato a sucessor se concentra na economia. O último sempre compensou amplamente. Foi o que aconteceu com os Estados Unidos. Por que não deveria acontecer também com o Japão, talvez em aliança com a China?
Finalmente, há a esfera ideológica. Hoje, a economia americana parece relativamente fraca, ainda mais considerando-se as exorbitantes despesas militares associadas às estratégias dos falcões. Além disso, Washington continua politicamente isolada; virtualmente ninguém (exceto Israel) acha que a posição do falcão faz sentido ou é digna de incentivo. Outros países temem ou não estão dispostos a enfrentar Washington diretamente, mas até sua indecisão está prejudicando os Estados Unidos.
Mas a reação americana representa pouco mais que uma arrogante torcida de braço. A arrogância tem suas próprias negativas. Usar as fichas significa deixar menos fichas para a próxima vez, e a aquiescência a contragosto provoca um ressentimento crescente. Durante os últimos 200 anos, os EUA conquistaram uma quantidade considerável de crédito ideológico. Mas, hoje em dia, os EUA estão gastando esse crédito ainda mais depressa do que gastaram seus excedentes em ouro nos anos 60. Os EUA enfrentam duas possibilidades nos próximos dez anos: podem seguir o caminho dos falcões, com consequências negativas para todos, mas especialmente para o país. Ou podem perceber que as negativas são grandes demais.
Simon Tisdall, do "Guardian", argumentou recentemente que, mesmo desconsiderando a opinião pública internacional, "os Estados Unidos não são capazes de ter sucesso numa guerra no Iraque sozinhos sem incorrer em enormes danos, principalmente em termos de seus interesses econômicos e seu abastecimento energético. Bush está reduzido a falar duro e parecer ineficaz". E, se os EUA invadirem o Iraque e forem obrigados a recuar, ele parecerá ainda mais ineficaz.
As opções do presidente Bush parecem extremamente limitadas e não há dúvida de que os EUA continuarão a declinar como força decisiva nos assuntos mundiais na próxima década. A verdadeira questão não é se a hegemonia americana está decaindo, mas se os EUA podem encontrar uma maneira de descer graciosamente, com danos mínimos para o mundo e para si mesmos.


Immanuel Wallerstein é pesquisador-sênior na Universidade Yale e autor, recentemente, de "The End of the World As We Know It: Social Science for the Twenty-First Century" (Mineápolis: University of Minnesota Press, 1999), que deve ser publicado no Brasil em breve com o título "O Fim do Mundo como o Concebemos".
Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves


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