São Paulo, Sábado, 21 de Agosto de 1999
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OPINIÃO ECONÔMICA

Reforma tributária e apartheid alimentar

EDMUNDO KLOTZ

O projeto de reforma tributária, na primeira versão apresentada pelo deputado Mussa Demes (PFL-PI), apesar do mérito quanto ao núcleo central -imposto cobrado no destino e no fim das contribuições cumulativas, como PIS, Cofins e CPMF-, contempla um conceito ultrapassado: isenção sobre a cesta básica de alimentos. Caso aprovado esse dispositivo, o Brasil estará incentivando um apartheid alimentar.
A cesta básica é um conceito criado pelo decreto-lei 399, de 30.04.1938, do Estado Novo, que define a ração essencial do trabalhador. De acordo com o decreto, todo trabalhador adulto tem direito a uma quantidade mínima de alimento industrializado, uma ração básica.
Ora, no mundo que se avizinha do século 21, não há mais espaço para um conceito tão discriminatório, pois o cidadão, de qualquer classe social, deve ter acesso aos alimentos postos no mercado, condição a ser propiciada por um sistema de tributação que garanta opção de escolha. A cesta básica nada mais é que a fotografia de um sistema perverso e injusto de tributação.
Com um PIB de US$ 830 bilhões, a oitava economia do mundo, o Brasil, não pode mais conviver com um sistema arcaico de tributação, o mesmo sistema de um país agrícola e de atividade primordialmente primária como era na década de 60. Temos ainda uma renda "per capita" de R$ 5.000/ano e uma taxação de alimentos com carga tributária na ponta do varejo de 34,7%, enquanto a média mundial está entre 5% e 8%. Significa dizer que, de cada três latas de ervilha, uma é do governo; de cada três pacotes de manteiga, um é do governo.
Os países que compõem o grupo dos 12 mais industrializados do mundo centram sua tributação em cinco ou seis tributos baseados na riqueza criada, ou seja, na renda, no consumo e no patrimônio. Já a prática internacional taxa os alimentos na Europa, Estados Unidos e Canadá em ¬ do valor cobrado no Brasil. E veja-se que ali a renda "per capita" anual está em torno dos US$ 25 mil. Verifica-se, portanto, a profunda injustiça que se comete contra o trabalhador de baixa renda em nosso país, afora a restrição de crescimento do mercado consumidor de alimentos "in natura" e industrializados, nas faixas entre dois e três salários mínimos, em razão da estagnação do setor produtivo e consequente paralisação do mercado de empregos na indústria e particularmente na agricultura.
O bom senso indica que a melhor alternativa para o país é a taxação de alimentos segundo padrões internacionais, ou seja, uma alíquota única de 7% a 8% na ponta final do varejo. Com essa taxação, o trabalhador teria acesso aos produtos do mercado, livrando-se do apartheid alimentar imposto pela ditadura da exagerada tributação.
O atual sistema tributário, defasado, é de 1967, quando ocorreu a substituição do IVC pelo ICM. Como se vê, o sistema foi centrado no processo de criação de riqueza, na atividade produtiva e na comercialização. O país, apesar de contar com um parque industrial razoável, em crescimento, ainda era uma economia essencialmente agrícola, que dependia das exportações de commodities para equilibrar sua balança de pagamentos. Hoje, o Brasil, além de produtos agrícolas, exporta bens duráveis, como aviões, automóveis, equipamentos eletroeletrônicos, mecânicos etc.
Apesar dos progressos do Plano Real e da estabilização da moeda, mais da metade da população brasileira está abaixo da linha de pobreza. Quarenta e nove por cento da população acima de 10 anos e com rendimento de até dois salários mínimos detém apenas 13% da renda, contra 51% que detêm 87% da renda. A tese de diminuição da taxação de alimentos virá, por consequência, a aumentar a renda das classes de até dois salários mínimos, com implicações no crescimento da produção agrícola e aumento do emprego no campo.
A arrecadação, por sua vez, estará garantida em seus padrões, pois, embora se reduza a alíquota de 34,7% para a taxa de 7% a 8%, o Estado ganhará no sentido horizontal de aumento de volume da produção, de redução da economia informal e da sonegação. A redução de 75% na alíquota dos alimentos vai permitir, ainda, em duas safras, a criação de 300 mil empregos diretos na agricultura e 30 mil na indústria. Considerando-se empregos indiretos, como motoristas, mecânicos, borracheiros, serviços industriais e comerciais nas cidades do interior, podem-se atingir 400 mil empregos, número superior ao dos assentamentos rurais efetuados nos últimos anos.
A reforma tributária, em processo de discussão, é a oportunidade singular que o país tem de se livrar do apartheid alimentar.


Edmundo Klotz, 64, engenheiro químico, é presidente da Abia (Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação).


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