UOL


São Paulo, domingo, 21 de setembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Sobre Cancún, quadrúpedes e bípedes

ALOIZIO MERCADANTE

A s vacas européias e norte-americanas, esses simpáticos e abnegados quadrúpedes, recebem dos governos da União Européia e dos Estados Unidos cerca de US$ 2 por dia para sua subsistência. Por outro lado, há ao redor de 1,2 bilhão de "bípedes implumes", como Platão definia o ser humano, que sobrevivem nos países em desenvolvimento com US$ 1 ou menos por dia. Essa notável desigualdade nos rendimentos de quadrúpedes e bípedes não se deve, como poderiam pensar os mais afoitos, ao maior número de membros dos primeiros, o que equalizaria a renda "per membru" de uns e outros, mas, sim, à escandalosa política de subsídios à agricultura que os países desenvolvidos praticam.
Com efeito, o protecionismo dos países desenvolvidos, especialmente na área agrícola, causa prejuízos enormes à população das nações em desenvolvimento. Alicerçadas em picos tarifários, barreiras sanitárias e fitossanitárias, cotas e em cerca de US$ 360 bilhões por ano de subsídios de todo tipo, as políticas agrícolas dos países desenvolvidos criam obstáculos muitas vezes intransponíveis para as exportações de commodities agrícolas, as quais são vitais para as economias de muitos países em desenvolvimento, notadamente os mais pobres. Mesmo para o Brasil, país que tem a décima economia mundial e pauta exportadora bastante diversificada, as exportações do chamado agronegócio são essenciais para a realização dos superávits comerciais necessários à superação da nossa vulnerabilidade externa. A esse respeito, basta assinalar que, entre 1993 e 2002, o agronegócio brasileiro gerou, apesar de tais obstáculos protecionistas e da sobrevalorização cambial, cerca de US$ 147 bilhões de superávit comercial.
Dada a alta produtividade de nossa agricultura e de boa parte de nossa indústria, a performance comercial do Brasil poderia ser bem melhor, caso as barreiras protecionistas das nações mais ricas fossem derrubadas. Assim sendo, a superação do protecionismo dos países desenvolvidos, especialmente na área da agricultura, e a construção de uma ordem internacional menos assimétrica são estratégicas para o desenvolvimento do Brasil. Entendemos perfeitamente que, por causa de sua multifuncionalidade e da necessidade de promover a segurança alimentar, a agricultura tenha de ter tratamento diferenciado. Contudo o excesso de protecionismo e de subsídios praticado pelos países mais abastados, justificado com alguns argumentos estapafúrdios, como o da necessidade de se assegurar o "bem-estar animal", acaba por prejudicar de forma mais intensa justamente a população rural de baixa renda das nações em desenvolvimento, as quais, além de enfrentarem a concorrência desleal das exportações subsidiadas, têm de conviver com a concentração fundiária e de renda. Foi por esses motivos que o governo brasileiro, realizando o que alguns analistas definiram como "golpe de mestre", criou e liderou, com êxito, o G21 na reunião da OMC (Organização Mundial do Comércio) em Cancún.
Embora a referida reunião tenha acabado num impasse técnico, o saldo político-diplomático foi muito positivo para o Brasil e para os demais países em desenvolvimento. Ao contrário do que aconteceu na Rodada Uruguai, quando os países em desenvolvimento, atuando de forma descoordenada, acabaram por ratificar acordos desequilibrados e assimétricos que os levaram a abrir as suas frágeis economias para os produtos e serviços das nações desenvolvidas sem que, entretanto, tivessem obtido contrapartidas nas áreas em que possuíam maior competitividade (agricultura e têxteis), desta vez os governos de tais países cerraram fileiras na defesa dos seus justos interesses. Com isso, evitou-se o pior, que seria a consolidação, por décadas, do protecionismo agrícola e da injusta ordem comercial global.
Temendo talvez pelo futuro de seus vetustos quadrúpedes, os EUA e a União Européia reagiram furiosamente à justificada insurreição da malta bípede. Acusaram-nos de estarmos revivendo a clivagem "ideológica" entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, típica das décadas de 60 e 70, e obstaculizando o progresso do "livre comércio", com prejuízos para todos. Ora, tal clivagem foi introduzida por eles já na Rodada Uruguai, da qual os países em desenvolvimento saíram apenas com promessas vãs. Agora, na Rodada Doha, ironicamente denominada também "Rodada do Desenvolvimento", tenta-se fazer a mesma coisa. Os governos das nações industrializadas querem arrancar concessões nos "temas de Cingapura", como regras draconianas para proteção dos investimentos, a exemplo do que foi tentado no finado MAI (Acordo Multilateral de Investimento), transparência e ulterior abertura do mercado de compras governamentais, política de concorrência etc., mas não admitem progressos significativos nos assuntos vitais para os países em desenvolvimento, como agricultura, antidumping e tratamento especial e diferenciado. Por isso Cancún fracassou.
Contrastando com o que afirmam alguns, acreditamos que o impasse gerado em Cancún possa vir a abrir perspectivas positivas para nossas negociações comerciais. Em primeiro lugar, o Brasil surge de Cancún como o grande líder dos países em desenvolvimento, o que deverá facilitar articulações diplomáticas que visem à defesa de nossos interesses. Em segundo, a paralisação temporária da discussão, na OMC, de temas polêmicos, como investimentos, compras governamentais, antidumping e subsídios agrícolas, gera condições concretas para que, na Alca, possam se acelerar as negociações no "trilho" do acordo 4+1 entre o Mercosul e os EUA, as quais não dependem do debate de tais assuntos. Em terceiro e mais importante, a nova atitude mais atuante e propositiva dos países em desenvolvimento na OMC, cristalizada na ação do G21, deverá, a longo prazo, fortalecer o sistema multilateral de comércio, pois nenhuma instituição será politicamente equilibrada e verdadeiramente multilateral enquanto refletir preponderantemente os interesses de algumas poucas nações desenvolvidas.
A luta será dura, e o Brasil, o Mercosul e o G21 devem preparar-se para árduas negociações. Mas cremos firmemente que, ao final do processo, chegaremos a uma ordem internacional mais justa, na qual, ao menos, o bem-estar dos bípedes do Terceiro Mundo receba tanta atenção quanto o dos quadrúpedes do Primeiro Mundo.


Aloizio Mercadante, 49, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, senador por São Paulo, secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores e líder do governo no Senado Federal. Internet: www.mercadante.com.br
E-mail -
mercadante@senador.gov.br


Texto Anterior: Opinião Econômica: Realismo e luta
Próximo Texto: Panorâmica - Resgate Estatal: Acordo sobre Alstom pode sair amanhã
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.