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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
Sobre Cancún, quadrúpedes e bípedes
ALOIZIO MERCADANTE
A s vacas européias e norte-americanas, esses simpáticos
e abnegados quadrúpedes, recebem dos governos da União Européia e dos Estados Unidos cerca de
US$ 2 por dia para sua subsistência. Por outro lado, há ao redor de
1,2 bilhão de "bípedes implumes",
como Platão definia o ser humano, que sobrevivem nos países em
desenvolvimento com US$ 1 ou
menos por dia. Essa notável desigualdade nos rendimentos de
quadrúpedes e bípedes não se deve, como poderiam pensar os mais
afoitos, ao maior número de
membros dos primeiros, o que
equalizaria a renda "per membru" de uns e outros, mas, sim, à
escandalosa política de subsídios à
agricultura que os países desenvolvidos praticam.
Com efeito, o protecionismo dos
países desenvolvidos, especialmente na área agrícola, causa prejuízos enormes à população das
nações em desenvolvimento. Alicerçadas em picos tarifários, barreiras sanitárias e fitossanitárias,
cotas e em cerca de US$ 360 bilhões por ano de subsídios de todo
tipo, as políticas agrícolas dos países desenvolvidos criam obstáculos
muitas vezes intransponíveis para
as exportações de commodities
agrícolas, as quais são vitais para
as economias de muitos países em
desenvolvimento, notadamente os
mais pobres. Mesmo para o Brasil,
país que tem a décima economia
mundial e pauta exportadora bastante diversificada, as exportações
do chamado agronegócio são essenciais para a realização dos superávits comerciais necessários à
superação da nossa vulnerabilidade externa. A esse respeito, basta
assinalar que, entre 1993 e 2002, o
agronegócio brasileiro gerou, apesar de tais obstáculos protecionistas e da sobrevalorização cambial,
cerca de US$ 147 bilhões de superávit comercial.
Dada a alta produtividade de
nossa agricultura e de boa parte
de nossa indústria, a performance
comercial do Brasil poderia ser
bem melhor, caso as barreiras protecionistas das nações mais ricas
fossem derrubadas. Assim sendo, a
superação do protecionismo dos
países desenvolvidos, especialmente na área da agricultura, e a
construção de uma ordem internacional menos assimétrica são
estratégicas para o desenvolvimento do Brasil. Entendemos perfeitamente que, por causa de sua
multifuncionalidade e da necessidade de promover a segurança alimentar, a agricultura tenha de ter
tratamento diferenciado. Contudo
o excesso de protecionismo e de
subsídios praticado pelos países
mais abastados, justificado com
alguns argumentos estapafúrdios,
como o da necessidade de se assegurar o "bem-estar animal", acaba por prejudicar de forma mais
intensa justamente a população
rural de baixa renda das nações
em desenvolvimento, as quais,
além de enfrentarem a concorrência desleal das exportações subsidiadas, têm de conviver com a
concentração fundiária e de renda. Foi por esses motivos que o governo brasileiro, realizando o que
alguns analistas definiram como
"golpe de mestre", criou e liderou,
com êxito, o G21 na reunião da
OMC (Organização Mundial do
Comércio) em Cancún.
Embora a referida reunião tenha acabado num impasse técnico, o saldo político-diplomático foi
muito positivo para o Brasil e para
os demais países em desenvolvimento. Ao contrário do que aconteceu na Rodada Uruguai, quando os países em desenvolvimento,
atuando de forma descoordenada,
acabaram por ratificar acordos
desequilibrados e assimétricos que
os levaram a abrir as suas frágeis
economias para os produtos e serviços das nações desenvolvidas
sem que, entretanto, tivessem obtido contrapartidas nas áreas em
que possuíam maior competitividade (agricultura e têxteis), desta
vez os governos de tais países cerraram fileiras na defesa dos seus
justos interesses. Com isso, evitou-se o pior, que seria a consolidação,
por décadas, do protecionismo
agrícola e da injusta ordem comercial global.
Temendo talvez pelo futuro de
seus vetustos quadrúpedes, os
EUA e a União Européia reagiram
furiosamente à justificada insurreição da malta bípede. Acusaram-nos de estarmos revivendo a
clivagem "ideológica" entre países
desenvolvidos e em desenvolvimento, típica das décadas de 60 e
70, e obstaculizando o progresso
do "livre comércio", com prejuízos
para todos. Ora, tal clivagem foi
introduzida por eles já na Rodada
Uruguai, da qual os países em desenvolvimento saíram apenas
com promessas vãs. Agora, na Rodada Doha, ironicamente denominada também "Rodada do Desenvolvimento", tenta-se fazer a
mesma coisa. Os governos das nações industrializadas querem arrancar concessões nos "temas de
Cingapura", como regras draconianas para proteção dos investimentos, a exemplo do que foi tentado no finado MAI (Acordo Multilateral de Investimento), transparência e ulterior abertura do
mercado de compras governamentais, política de concorrência
etc., mas não admitem progressos
significativos nos assuntos vitais
para os países em desenvolvimento, como agricultura, antidumping e tratamento especial e diferenciado. Por isso Cancún fracassou.
Contrastando com o que afirmam alguns, acreditamos que o
impasse gerado em Cancún possa
vir a abrir perspectivas positivas
para nossas negociações comerciais. Em primeiro lugar, o Brasil
surge de Cancún como o grande líder dos países em desenvolvimento, o que deverá facilitar articulações diplomáticas que visem à defesa de nossos interesses. Em segundo, a paralisação temporária
da discussão, na OMC, de temas
polêmicos, como investimentos,
compras governamentais, antidumping e subsídios agrícolas, gera condições concretas para que,
na Alca, possam se acelerar as negociações no "trilho" do acordo
4+1 entre o Mercosul e os EUA, as
quais não dependem do debate de
tais assuntos. Em terceiro e mais
importante, a nova atitude mais
atuante e propositiva dos países
em desenvolvimento na OMC,
cristalizada na ação do G21, deverá, a longo prazo, fortalecer o sistema multilateral de comércio, pois
nenhuma instituição será politicamente equilibrada e verdadeiramente multilateral enquanto refletir preponderantemente os interesses de algumas poucas nações
desenvolvidas.
A luta será dura, e o Brasil, o
Mercosul e o G21 devem preparar-se para árduas negociações. Mas
cremos firmemente que, ao final
do processo, chegaremos a uma
ordem internacional mais justa,
na qual, ao menos, o bem-estar
dos bípedes do Terceiro Mundo receba tanta atenção quanto o dos
quadrúpedes do Primeiro Mundo.
Aloizio Mercadante, 49, é economista e
professor licenciado da PUC e da Unicamp, senador por São Paulo, secretário
de Relações Internacionais do Partido
dos Trabalhadores e líder do governo no
Senado Federal.
Internet: www.mercadante.com.br
E-mail -
mercadante@senador.gov.br
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