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OPINIÃO ECONÔMICA
Um outro basta?
LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA
É pouco provável que os ministros responsáveis pelo comércio externo cheguem a um
acordo sobre a Rodada Doha na
reunião da OMC (Organização
Mundial do Comércio) prevista
para o dia 13 de novembro, em
Hong Kong. A expectativa oficial é
que nesse dia eles logrem definir
um quadro geral das negociações,
mas a situação da economia mundial, marcada por profundos desequilíbrios comerciais, não é favorável à maior liberalização comercial. O próprio Brasil, na defesa legítima de seus interesses, deverá
apresentar objeções importantes
ao acordo pretendido, e essa será,
afinal, uma das razões para que essa minha previsão pessimista se
confirme. Não serão, porém, apenas o Brasil e os demais países em
desenvolvimento contrários ao
protecionismo dos ricos na área
agrícola que apresentarão obstáculos. Também os países ricos se revelarão menos interessados em liberalizar adicionalmente o comércio, dada a concorrência no setor
industrial que chega da China e da
Índia.
Caso essa previsão de fracasso
das negociações se confirme, provavelmente não teremos o que lamentar. Sem dúvida, para um país
de desenvolvimento médio como o
Brasil, seria melhor que houvesse
maior liberalização comercial. Foi-se o tempo que nossa estratégia
principal de desenvolvimento baseava-se no protecionismo. Hoje,
os países mais protecionistas são os
ricos, que enfrentam desvantagens
competitivas na área industrial,
em relação aos países em desenvolvimento com mão-de-obra barata,
e na área agrícola e pecuária, em
relação aos que têm recursos naturais abundantes e mais sol. Mas a
maior liberalização só interessa se
for estritamente comercial.
Os países ricos sabem disso e, por
isso mesmo, o objeto de sua negociação há muito deixou de ser comercial. Teoricamente, as reuniões
continuam a se concentrar em tarifas aduaneiras, mas o que a esses
países interessa é outra coisa. Já na
Rodada Uruguai, eles colocaram
na mesa, de um lado, o aumento
de suas próprias prerrogativas como a abertura dos serviços, o fortalecimento da propriedade intelectual e o aumento de garantias aos
investimentos estrangeiros. De outro, a limitação da capacidade dos
países pobres e médios de fazer política de desenvolvimento como a
definição de subsídios para determinados setores e a preferência para empresas nacionais nas compras governamentais. Os jornais
dão atenção muito maior às negociações comerciais, mas o que realmente interessa aos países ricos são
essas outras vantagens. Como diz a
"Economist", "a maioria dos ganhos da Rodada Doha virá da liberalização dos serviços financeiros,
médicos e de contabilidade". Fui
dos primeiros a apoiar idéia de
uma maior integração comercial
americana, mas, quando verifiquei que a Alca não significava isso, mas vantagens extracomerciais
para os Estados Unidos, concordei
com os negociadores brasileiros.
Agora, também ao nível da OMC o
problema se repete.
Por meio da Rodada Doha os
países ricos não esperam exportar
mais para os países em desenvolvimento, porque sabem que não são
competitivos. Além disso, sabem
que as balanças comerciais deverão ser, afinal, multilateralmente
equilibradas. O que eles querem é
conseguir ainda mais acesso aos
mercados dos países em desenvolvimento por meio de suas empresas multinacionais, porque, nesse
movimento, não precisam dar reciprocidade: os países em desenvolvimento não têm a menor possibilidade de, via seus próprios investimentos, ter o mesmo acesso a seus
mercados. Já cedemos o acesso a
nosso mercado interno muito além
do que era razoável, mas eles querem que cedamos mais. Oferecem
em troca de uma "poupança externa" que não nos beneficia porque
aumenta principalmente o consumo, e não o investimento, e uma
tecnologia que eles afinal não trazem.
Além disso, os países ricos querem neutralizar a capacidade
competitiva dos países de desenvolvimento médio. Eles próprios
usaram amplamente recursos de
política industrial quando estavam em estágio semelhante de desenvolvimento, mas, desde a Rodada Uruguai, os países ricos lograram impor aos países de desenvolvimento médio restrições que hoje
representam um obstáculo importante à formulação e à implementação de estratégias nacionais de
desenvolvimento.
Naquela ocasião, os países ricos
lograram enormes vantagens porque os países em desenvolvimento
estavam fragilizados pela crise da
dívida externa. Hoje, a capacidade
de resistência a pressões desses países é bem maior. Por outro lado,
nossos negociadores comerciais,
capitaneados pelo ministro Celso
Amorim, estão bem cientes dos riscos que correm. Diferentemente de
seus colegas da área financeira,
não partem do pressuposto de que
nossos interesses são os mesmos
dos interesses dos ricos. Já deram
um basta no caso da Alca, e, caso
os europeus insistam em manter
seus incríveis subsídios agrícolas,
como é provável, e os americanos
busquem mais privilégios na prática unilaterais para suas empresas,
não tenho dúvida de que também
darão um basta para a Rodada
Doha. Mais vale não ter "sucesso"
nessa rodada do que sofrer os enormes prejuízos trazidos pela Rodada Uruguai e pelo reconhecimento
abusivo de direitos de propriedade
intelectual.
Luiz Carlos Bresser-Pereira, 71, professor da Fundação Getúlio Vargas, ex-ministro da Fazenda, da Reforma do Estado,
e da Ciência e Tecnologia, é autor de "Desenvolvimento e Crise no Brasil: 1930-2002".
Internet: www.bresserpereira.org.br
E-mail -
lcbresser@uol.com.br
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