São Paulo, quinta-feira, 22 de abril de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

Crise social e modelo econômico

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Todos nós preferiríamos levar as nossas vidas e fingir que não estamos vendo. Mas poucos conseguem escapar dos efeitos da crise social, principalmente nos grandes centros urbanos. Nas últimas semanas, multiplicaram-se sinais de aprofundamento da crise: invasões no campo e na cidade, conflitos armados em favelas, greves de diversas categorias de funcionários públicos, cenas de barbárie em rebelião de presidiários.
Uma das razões fundamentais desse quadro preocupante é o desempenho medíocre da economia e a sua incapacidade crônica de proporcionar oportunidades satisfatórias para a grande maioria da população. Não podemos perder de vista que o Brasil está há quase 25 anos sem crescer de forma significativa.
Vinte e cinco anos! É toda uma geração que simplesmente não sabe o que é desenvolvimento. O nosso país, que sempre foi uma fronteira de expansão e um pólo de atração para pessoas de todo o mundo, passou a exportar brasileiros em número significativo, pela primeira vez na sua história.
Desde o início da década de 80, o Brasil vem crescendo, regra geral, bem abaixo do necessário para gerar empregos em qualidade e quantidade adequadas. Como resultado, aumenta quase continuamente o número de desempregados e subempregados.
Um desses milhões de desempregados, capixaba, vendeu o pouco que tinha e viajou para Brasília. Passou dois dias na praça dos Três Poderes, tentando ser recebido pelo presidente da República que ajudara a eleger. Acabou ateando fogo ao próprio corpo. Foi internado em estado grave e morreu no último domingo.
Diante da tragédia social brasileira, o conservadorismo da política econômica, não só no governo atual como nos anteriores, chega a ser escandaloso. A paciência dos brasileiros está no fim. Os suicidas serão minoria. A maioria recorrerá, cada vez mais, às reivindicações, às greves e às invasões. Crimes e transgressões se tornarão mais freqüentes, aumentando a insegurança de todos.
É contra esse pano de fundo que se pode compreender a insatisfação quase generalizada com a política econômica atual. O ano de 2003 foi bastante favorável ao crescimento dos países em desenvolvimento. Se considerarmos o grupo dos principais países "emergentes", verificaremos que quase todos eles registraram taxas de expansão elevadas. As maiores taxas de crescimento do PIB real (próximas de 10%) foram alcançadas por Argentina, Índia e China. Turquia e Rússia cresceram cerca de 6%. Taiwan, Polônia, Indonésia e Coréia do Sul experimentaram taxas da ordem de 4% a 5%. Nesse grupo, só México e África do Sul registraram taxas medíocres, entre 1% e 2%, que representam crescimento per capita próximo de zero.
O nosso resultado foi, como se sabe, ainda pior. Num conjunto mais amplo de 25 "mercados emergentes", apenas Brasil e Israel acusaram diminuição do PIB em 2003.
O ano de 2004 será melhor para o Brasil. Mas não muito. O que está se configurando é uma recuperação tímida e desigual, muito inferior à que seria requerida para começar a tirar o mercado de trabalho do estado calamitoso em que se encontra há vários anos.
Não é à toa que aumentam as críticas à política econômica. Vai ficando mais claro que o país precisa não de uma flexibilização das políticas atuais, mas de um novo modelo econômico, isto é, de uma orientação profundamente diferente da que temos tido. Esse novo modelo não precisaria ser implementado de forma abrupta e agressiva. Mas, se ele vier um dia, a sua chegada será anunciada por um sinal seguro e inequívoco: ruídos de descontentamento em Washington, em Wall Street e na Febraban.
Neste momento, em Brasília, transcorre dentro do governo uma discussão emocionante. Os defensores de uma flexibilização da política econômica propõem, com o devido cuidado, uma revisão da meta de inflação para 2005. Discute-se acirradamente se a meta atual de 4,5% deve ser aumentada um pouco, talvez para 5% ou 5,5%. O ministro Palocci resiste, ao que parece.
Patético. Isso equivale (com o perdão da comparação um pouco surrada) a debater a disposição das mesas para o chá das cinco no convés do Titanic.
Não sei se deveria fazer mais uma comparação. Hesito. Vá lá: infelizmente, com o passar do tempo, o governo Lula lembra cada vez mais um outro governo sul-americano de triste memória -o governo De la Rúa.
Não quero exagerar. Há tempo de evitar desastres e tomar o rumo certo. O Brasil de 2004 não é a Argentina de 2000 ou 2001. Mas há semelhanças inquietantes: uma grave crise socioeconômica e um governo que, embora eleito para mudar, tem medo de tentar fazê-lo.
Uma mistura explosiva.


Paulo Nogueira Batista Jr., 49, economista e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

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