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São Paulo, domingo, 23 de fevereiro de 2003

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LUÍS NASSIF

A importância da bossa

Quando se fala em música popular, há certa dificuldade em conceituar seus vários aspectos.
Por exemplo, gênero é um conjunto de características pelas quais se pode classificar um tipo de música. Samba é gênero, assim como o baião, o coco, o maracatu.
Estilo caracteriza um modo específico de tocar. Há vários estilos de interpretação no jazz, no samba, na valsa.
Por movimento, se entendam atuações de grupos de músicos em torno de determinada bandeira. O tropicalismo foi tipicamente um movimento, assim como a MPB liderada por Elis Regina. A rigor, não se prendiam nem a um gênero nem a um estilo específico de tocar, mas a um auê em torno de uma bandeira.
O movimento mais completo de todos, em minha opinião, é o baião. Trata-se de um gênero nordestino que, a partir da iniciativa de Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga, converteu-se em um movimento competentemente planejado e de imenso alcance popular. A idéia inicial da dupla era difundir a música nordestina. Poderiam ter optado pelo coco. Ficaram com o baião, por ser mais fácil de tocar. A jovem guarda também foi um movimento importante, mas sem se constituir propriamente em um gênero.
Posto isso, o que foi a bossa nova? Foi um movimento, sem dúvida, com símbolos próprios (violão, banquinho, praia). Juntou de forma brilhante o marketing do Rio de Janeiro -desde a década anterior um símbolo mundial de mulheres bonitas e sensualidade-, casando com a contemporaneidade da classe média moderna. Virou padrão mundial de modo de vida.
Como gênero, foi fraco -conforme tentei demonstrar na coluna passada. Gerou uma produção insuficiente, que se esgotou em poucos anos.
O que deixei de enfatizar -por problemas de espaço- foi sua importância como estilo, como modo de tocar. E aí se está falando em João Gilberto. Seu grande mérito foi ter desenvolvido uma técnica de tocar na qual acabaram cabendo quase todos os gêneros musicais do país. No final dos anos 60, além da bossa nova propriamente dita e do samba-canção, o estilo influenciou a marchinha, a marcha-rancho e a própria valsa. Depois disso, foi responsável pelo enorme avanço da música brasileira pós-bossa nova. Trouxe a nova harmonia para a MPB.
Esse novo estilo de harmonia surge a partir dos anos 40 na música norte-americana. Entra no Brasil por meio de dois músicos centrais: Garoto no violão e Johnny Alf no piano. Há um conjunto de músicos norte-americanos influenciando a nova geração. Chat Baker é uma influência clássica e reconhecida, mas há também o violão de Barney Kessel e a voz de Julie London -conforme depoimento que me foi prestado por Baden Powell e que resultou em duas páginas na Folha no início dos anos 90.
À nova harmonia, João Gilberto acrescenta a batida. Ressalve-se que ele não é o pai da batida. No lançamento de "O Balanço da Bossa", Ruy Castro distribuiu para a imprensa uma fita com uma gravação histórica de Garoto e Johnny Alf, na qual o segundo reproduz a batida no piano, do mesmo modo que Gilberto faria depois no violão. A fita acabou passando despercebida porque, nela, o próprio Ruy fazia questão de enfatizar que aquela batida não era de bossa nova, mas de jazz. Não era jazz: era bossa nova pura. Ruy havia chegado ao ancestral mais antigo da batida de João Gilberto, mas não percebeu. Na fita, o que ele tachou de bossa nova autêntica -uma gravação balançadíssima de João Donato no acordeão- era o samba sincopado, da forma como era tocada pelos conjuntos vocais dos anos 40, cuja influência sobre João Gilberto foi dissecada de forma brilhante no seu livro.
O fato de Johnny Alf ter criado a batida não diminui a enorme, a grandiosa contribuição de João Gilberto para a música brasileira. Graças a ele, a nova técnica se disseminou pelo Brasil, de norte a sul, criou um padrão de harmonia inigualável. É só conferir Quincy Jones babando com as harmonias de Djavan e de Dori Caymmi, Michel Legrand dizendo que seu sonho era ser Ivan Lins.
Foi assim que se construiu a mais importante música popular da atualidade.

E-mail - LNassif@uol.com.br



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