São Paulo, domingo, 23 de junho de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Patinando em gelo fino

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

O jornal "Valor", em sua edição de sexta-feira, dia 21 deste mês, informa que nos Estados Unidos a inadimplência entre janeiro e maio bateu nos US$ 46 bilhões. Há uma evidente concentração de calotes nas empresas de telecomunicações e produtoras de cabos de fibra óptica. Justamente as "queridinhas" dos apologistas da nova economia. Isso não é surpreendente: nas avaliações dos anos 90, esses setores prometiam lucros elevados e expansão prolongada.
"Aí vem confusão!" A advertência foi lançada há tempos pela revista "The Economist". Não é de hoje que a publicação inglesa vem chamando a atenção de seus leitores para a fragilidade dos bancos europeus e americanos, os mais envolvidos com créditos aos setores de crescimento rápido.
Na década de 80, a ampliação dos mercados de capitais, ao estimular a colocação direta de papéis de dívida, capturou as empresas mais fortes e mais bem reputadas, deixando para os bancos a clientela de maior risco, as empresas mais frágeis e os consumidores. Esses mercados teriam a virtude de combinar as vantagens da melhor circulação das informações, da redução dos custos de transação e da distribuição mais racional do risco.
Nos anos 90, para enfrentar a parada dura, os bancos foram à luta: reivindicaram e conseguiram se transformar num supermercado financeiro, terminando na separação das funções entre os bancos comerciais e de investimento, imposta pelo Glass-Steagall Act na crise bancária dos anos 30. Buscaram escapar das regras prudenciais, promovendo a securitização dos créditos. Ainda tangidos pelas forças da concorrência, deram início a um intenso e ainda não acabado processo de concentração bancária e de expansão internacional.
Está cada vez mais claro que todos esses fenômenos, típicos do capitalismo da "exuberância irracional" de todos os tempos, estão associados à recente multiplicação das crises cambiais, financeiras e bancárias. Apesar de todos os avanços nas técnicas de gestão do risco e do maior rigor imposto pelas regras da Basiléia, o ímpeto da concorrência levou o sistema bancário internacional à incessante violação de todas as normas e à velha e fatal combinação entre euforia, má avaliação dos créditos, concentração setorial de ativos e superalavancagem.
Os bancos comerciais são, na verdade, instituições singulares: responsáveis pela criação de moeda e pelo sistema de pagamentos na economia capitalista, dispõem da faculdade de avançar o poder de compra, até então inexistente, aos proprietários de riqueza, a partir da avaliação dos riscos de crédito. Por isso muitos só consideram verdadeiras crises financeiras aquelas que afetam a liquidez e a solvência bancária.
Diga-se que o establishment financeiro americano jamais se conformou com a regulamentação imposta aos bancos e demais instituições não-bancárias pelo Glass-Steagall Act no início dos anos 30. Foi também grande a resistência dos negócios do dinheiro às propostas de Keynes e de Dexter White para a adoção de controles sobre os movimentos de capitais nas reformas do sistema monetário internacional do pós-guerra. Ainda assim, nos sistemas monetários e financeiros constituídos depois da Segunda Guerra, o clima favorável à manutenção do pleno emprego e às políticas de desenvolvimento permitiu que o pêndulo se inclinasse, durante um bom tempo, para a presença importante dos bancos públicos, para o direcionamento do crédito e para a regulamentação e especialização das instituições financeiras, bancárias e não-bancárias.
Na verdade, as políticas dos Estados Unidos de estímulo à abertura financeira e à privatização bancária nos anos 80 e 90 estão associadas à recuperação do predomínio da alta finança na hierarquia de interesses que se digladiam no interior do Estado plutocrático americano.
A crise da dívida externa do início dos anos 80 e a reafirmação do papel do dólar como moeda universal criaram as condições para que surgissem novas formas de intermediação financeira, uma segunda etapa da globalização. Foi nesse ambiente marcado pela sustentação da supremacia do dólar e de reestruturação do sistema monetário internacional que ocorreu "a grande fuga para a frente", consubstanciada no aparecimento dos novos processos de desregulamentação e securitização.
Estimulados pelo longo crescimento e constrangidos pela concorrência, os grandes bancos internacionalizados vêm tomando decisões que parecem distantes do modelo idealizado. Certamente não são as mais eficientes do ponto de vista social. Mas a fantasia -não a realidade- levou adiante os programas de privatização bancária na periferia. Em vez de fortalecer os seus sistemas públicos e nacionais de crédito, os governos entregam-se à utopia da maior eficiência dos estrangeiros ou à quimera de que contariam com liquidez garantida em moeda forte no caso de uma crise no balanço de pagamentos. Os argentinos estão aprendendo o quanto custa acreditar em tolices desse tipo.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 59, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


Texto Anterior: Tendências Internacionais: Sistema global opera sem modelo único de ajuste fiscal
Próximo Texto: Luís Nassif: Meu amigo Zé Grandão
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.