São Paulo, sábado, 23 de outubro de 2004

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PÂNICO

Diversos colapsos sucedem quebra da Bolsa em 1929 e deixam certeza de que sempre uma nova crise deve irromper

Ecos do crash persistem depois de 75 anos

DAVID WIGHTON
DO "FINANCIAL TIMES"

"A trama da peça é sempre a mesma; só mudam os personagens", afirma Irving Kahn, ao estudar a sucessão de crashes dos mercados a que assistiu em seus 76 anos de carreira em Wall Street. "As pessoas são cobiçosas. E a cobiça muitas vezes é mais forte que o medo."
Há 75 anos, o medo finalmente superou a cobiça, e os preços das ações norte-americanas desabaram e deram início ao pior colapso da história das Bolsas.
Foi, na opinião de muitos, um crash que deveria ter acabado com todos os crashes. Mas, como John Kenneth Galbraith afirma na mais recente introdução ao seu clássico relato do colapso de 1929, as expansões e contrações das Bolsas de Valores parecem ser parte de um "processo básico e recorrente". Ou seja, a dúvida não é se acontecerão, mas quando.
Sete anos atrás, ele escreveu que o mundo estava atravessando uma "era de enorme especulação". Mesmo que demorasse mais três anos, a contração inevitavelmente surgiu.
Da mesma forma que o boom do final dos anos 90 tinha muitas semelhanças com o que o precedeu 70 anos antes, o colapso posterior também repetiu muitos dos traços de 1929. No entanto, algumas lições foram aprendidas, e os danos para os investidores, para Wall Street e para a economia como um todo foram muito menos severos.
"Cuidado com os especialistas" foi uma das lições aprendidas por Irving Kahn, que aos 98 anos continua na ativa como presidente do conselho da Kahn Brothers, que administra cerca de US$ 800 milhões em ativos. Quando Kahn chegou a Wall Street, em 1928, quase todos os especialistas alegavam que a expansão continuaria. Kahn discordou: "Não sabia muita coisa, mas achava que o mercado tinha enlouquecido", diz. O analista júnior estava tão convencido de sua teoria que, no verão de 1929, usou todas as suas economias para adquirir 50 ações da Magna Copper. "Os corretores diziam que eu perderia todo o meu dinheiro. E, em apenas quatro meses, mais que dupliquei meu investimento."
Kahn selecionou ações de uma mineradora de cobre em parte devido aos conselhos de Benjamin Graham, a cujas aulas de finanças ele assistia na Universidade Columbia. Graham, que veio a se tornar um dos mais famosos investidores do século e mentor de Warren Buffett, não se saiu muito bem no crash. Ainda que tivesse previsto a aproximação de um grande colapso, não agiu com rapidez suficiente, e o fundo que ele dirigia quebrou, o que custou a perda da maior parte do dinheiro de sua família, ainda que no futuro ele conseguisse recuperar os prejuízos.
Graham não foi o único dos grandes nomes a sofrer. Poucas das principais instituições de Wall Street emergiram com seus ativos ou reputações intactos. Os bancos se deixaram iludir e bancaram a abertura de capital de empresas dúbias a preços exorbitantes. Nos anos 90, isso aconteceu com empresas de varejo via internet. Nos anos 20, eram os fundos de investimento.
Diante da demanda insaciável dos investidores por ações, os bancos de Wall Street começaram a vender ações em empresas criadas para comprar papéis de outras empresas, as quais, por sua vez, adquiriam ações de ainda outras empresas. No mais infame dos exemplos, o Goldman Sachs lançou a Goldman Sachs Trading Company, que, pouco antes do crash, lançou dois outros fundos, o Shenandoah e a Blue Ridge Corporation, com um capital combinado de aproximadamente US$ 250 milhões.
Em poucos meses, os preços das ações haviam despencado e o Goldman Sachs estava em crise. Demorou anos para a empresa se recuperar, e as cicatrizes demoraram ainda mais para desaparecer. "Quando o Goldman Sachs reiniciou suas atividades de administração de fundos, nos anos 80, o comitê administrativo debateu por muito tempo antes de permitir que o nome da firma fosse usado para esse tipo de negócio", diz Lisa Endlich em "Goldman: The Culture of Success", uma história do banco de investimento.
"As lições de 1929 custaram a ser esquecidas." Nem todos os grandes nomes se deixaram apanhar na armadilha. Charlie Merrill, que mais tarde fundaria o Merrill Lynch, vendeu suas ações e aconselhou todos os clientes de sua corretora a vender as deles meses antes do colapso.
Setenta anos mais tarde, a empresa que leva seu nome demonstrava muito mais otimismo, à beira de um novo crash. Henry Blodget, analista de internet do Merrill Lynch, foi um dos principais defensores das ações de tecnologia que dispararam em 1999 (como a das estações de rádio haviam disparado em 1929). Mas James Gorman, que dirige a divisão de clientes privados do grupo, diz que sugerir que o banco de investimento não tenha aprendido a lição de seu fundador é se equivocar quanto à extensão das mudanças pelas quais o mundo passou.
Os clientes do Merrill Lynch tinham carteiras mais diversificadas em 1999 do que era o caso em 1929, quando os investidores concentravam suas aplicações em algumas poucas ações de alto risco. "As pessoas se esquecem de que Henry Blodget jamais deixou de apontar que as ações de internet tinham alto risco e deveriam responder por apenas uma pequena porção de uma carteira de investimento". E, se Merrill tivesse vendido, na alta dos anos 90, com antecedência semelhante à de 1929, teria perdido alguns meses de boom e talvez até a recuperação de 2003. "Charlie Merrill estaria completamente errado", afirma Gorman.
Se vender cedo demais antes de um crash pode ser custoso, comprar cedo demais depois também oferece dificuldades. Kahn cometeu esse erro em 1931. "A recessão já durava dois ou três anos, e as ações pareciam muito baratas", relembra. "Mas caíram ainda mais em 1932." O mercado foi abalado por uma onda de falências bancárias, que arrastaram a economia a uma nova queda. O estado precário do sistema bancário norte-americano era uma das fraquezas na economia que transformou a recessão que acompanhou o crash em depressão. Um dos motivos para que os crashes posteriores não tivessem o mesmo impacto econômico foram as reformas legislativas dos anos 30, que removeram certas fraquezas estruturais. Entre elas, estava a criação da Federal Deposit Insurance Corporation, uma agência do governo que preservava até US$ 100 mil do dinheiro de um investidor, em caso de colapso bancário.

Política monetária
Uma área em que o debate continua indefinido, quanto às lições do colapso de 1929, é a política monetária. Muitos economistas acreditam que, se o Federal Reserve (Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos) tivesse agido para conter a alta das Bolsas em 1928, os danos teriam sido muito menores quando começou a queda. De forma semelhante, há quem critique Alan Greenspan, o presidente do Fed, por não restringir a "exuberância irracional" para a qual apontou, nos mercados, já em 1996. Os cínicos suspeitam de que, como em 1929, as autoridades optaram por não estourar a bolha mais cedo porque não queriam levar a culpa por seu fim. Como observou o professor Galbraith, "a morte imediata tem a desvantagem de também identificar o executor".
Mas Kahn sabe o quanto é difícil nadar contra a maré em um ciclo de expansão. Em 1929, seu pai estava desesperado para entrar no mercado de ações e insistia: "Por que você não me compra algumas? Você enriquece outras pessoas, por que não quer me enriquecer?". Por fim, Kahn cedeu e adquiriu ações da AT&T com os US$ 2.500 que seu pai tinha poupado. "Demorou 18 anos para que ele recuperasse seu dinheiro."


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