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GESNER OLIVEIRA
Perigos do esmolão
Medidas de atenuação da
indigência podem servir à
manipulação política e à
perpetuação da miséria
O COMPROVADO sucesso eleitoral de programas de transferência de renda como o
Bolsa-Família terá resultados ambíguos sobre a implementação prática das políticas de desenvolvimento.
Em países nos quais o sistema político-partidário amadureceu e nos
quais a sociedade civil está organizada, tais experimentos poderão representar avanço. No Brasil, em
contraste, corre-se o risco de desvirtuamento do objetivo louvável
de redução de desigualdade e combate à pobreza.
O Brasil tem uma das distribuições de renda mais perversas do
mundo. O índice de concentração é
comparável ao de países como Serra
Leoa, com uma renda per capita 14
vezes inferior à brasileira; é ainda
maior que o da África do Sul, recém-egressa de regime de apartheid dos
mais excludentes da história contemporânea. Segundo classificação
do Banco Mundial, só haveria sete
países em situação de maior concentração do que a brasileira. Assim, esforços sistemáticos de transferências para setores mais pobres
são bem-vindos.
Há, contudo, três riscos que estão
a exigir providências concretas. A
julgar pelo seminário promovido
nesta semana na Academia de Tênis
em Brasília pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à
Fome, tais preocupações não parecem constar na lista de prioridades.
O primeiro risco reside na baixa
(para não dizer inexistente) condicionalidade para o recebimento dos
benefícios dos programas agrupados no Bolsa-Família. O requisito
de a criança freqüentar a escola é risível.
Considerando a qualidade deplorável do ensino básico na rede pública, a mera freqüência é insuficiente para garantir que os recursos
aplicados representarão de fato aumento de capital humano em favor
dos mais pobres.
Talvez mais importante do que isso seja a maneira pela qual a transferência governamental seja percebida. Se for tomada como um mero
favor de um pai dos pobres, representará retrocesso de décadas. Se de
fato representar uma oportunidade
de acesso ao bem essencial do conhecimento, será instrumento de
desenvolvimento.
Porém mesmo um programa sério de condicionalidade não é suficiente por si só para erradicar a situação de pobreza. Daí o segundo
risco constituir a falta de articulação da distribuição de bolsas com
outros programas de fomento setorial ou regional.
Mas o terceiro risco é o mais grave. Reside na possibilidade de captura política. Na ausência de salvaguardas, os critérios técnicos que
deveriam reger a distribuição de benefícios serão trocados pelos mapas
eleitorais.
Assim, em vez de aumentar os benefícios às cegas, seria prioritário
constituir corpo qualificado e relativamente independente de interferências político-eleitoreiras. Da
mesma forma, é urgente dispor de
painel de indicadores de avaliação
dos recursos destinados aos programas de forma a permitir que a comunidade meça sua eficácia nas diferentes regiões do país e esferas governamentais.
Na ausência de tais cuidados, os
programas de transferência gerarão
incentivos perversos. Cada administração tentará elevar o valor dos
benefícios, independentemente de
seus efeitos sobre a acumulação de
capital humano e conseqüente aumento de produtividade.
A pressão fiscal daí decorrente
imporá novas restrições à expansão
do investimento público, especialmente em infra-estrutura. Isso terá
efeito nocivo sobre a competitividade da economia e a capacidade de
crescimento, estreitando a margem
para a geração de oportunidades para as camadas mais pobres.
Conta a lenda de que um sábio teria mandado seu discípulo lançar ao
precipício uma vaca que constituía a
única fonte de alimento de uma família muito pobre. Consternado, o
discípulo cumpriu a ordem. E, depois de certo tempo, constatou que a
mesma família havia prosperado
mediante árduo trabalho e empreendimento.
No mundo real, as coisas não são
bem assim. A engenharia social evoluiu o suficiente para demonstrar a
necessidade de medidas de atenuação da indigência. No entanto, quando aplicadas sem os devidos cuidados, terminam servindo à manipulação política e à perpetuação da miséria e do subdesenvolvimento.
GESNER OLIVEIRA, 50, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP,
presidente do Instituto Tendências de Direito e Economia e
ex-presidente do Cade.
Internet: www.gesneroliveira.com.br
gesner@fgvsp.br
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