São Paulo, sábado, 24 de junho de 2006

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GESNER OLIVEIRA

Perigos do esmolão

Medidas de atenuação da indigência podem servir à manipulação política e à perpetuação da miséria

O COMPROVADO sucesso eleitoral de programas de transferência de renda como o Bolsa-Família terá resultados ambíguos sobre a implementação prática das políticas de desenvolvimento.
Em países nos quais o sistema político-partidário amadureceu e nos quais a sociedade civil está organizada, tais experimentos poderão representar avanço. No Brasil, em contraste, corre-se o risco de desvirtuamento do objetivo louvável de redução de desigualdade e combate à pobreza. O Brasil tem uma das distribuições de renda mais perversas do mundo. O índice de concentração é comparável ao de países como Serra Leoa, com uma renda per capita 14 vezes inferior à brasileira; é ainda maior que o da África do Sul, recém-egressa de regime de apartheid dos mais excludentes da história contemporânea. Segundo classificação do Banco Mundial, só haveria sete países em situação de maior concentração do que a brasileira. Assim, esforços sistemáticos de transferências para setores mais pobres são bem-vindos.
Há, contudo, três riscos que estão a exigir providências concretas. A julgar pelo seminário promovido nesta semana na Academia de Tênis em Brasília pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, tais preocupações não parecem constar na lista de prioridades.
O primeiro risco reside na baixa (para não dizer inexistente) condicionalidade para o recebimento dos benefícios dos programas agrupados no Bolsa-Família. O requisito de a criança freqüentar a escola é risível.
Considerando a qualidade deplorável do ensino básico na rede pública, a mera freqüência é insuficiente para garantir que os recursos aplicados representarão de fato aumento de capital humano em favor dos mais pobres.
Talvez mais importante do que isso seja a maneira pela qual a transferência governamental seja percebida. Se for tomada como um mero favor de um pai dos pobres, representará retrocesso de décadas. Se de fato representar uma oportunidade de acesso ao bem essencial do conhecimento, será instrumento de desenvolvimento.
Porém mesmo um programa sério de condicionalidade não é suficiente por si só para erradicar a situação de pobreza. Daí o segundo risco constituir a falta de articulação da distribuição de bolsas com outros programas de fomento setorial ou regional.
Mas o terceiro risco é o mais grave. Reside na possibilidade de captura política. Na ausência de salvaguardas, os critérios técnicos que deveriam reger a distribuição de benefícios serão trocados pelos mapas eleitorais.
Assim, em vez de aumentar os benefícios às cegas, seria prioritário constituir corpo qualificado e relativamente independente de interferências político-eleitoreiras. Da mesma forma, é urgente dispor de painel de indicadores de avaliação dos recursos destinados aos programas de forma a permitir que a comunidade meça sua eficácia nas diferentes regiões do país e esferas governamentais.
Na ausência de tais cuidados, os programas de transferência gerarão incentivos perversos. Cada administração tentará elevar o valor dos benefícios, independentemente de seus efeitos sobre a acumulação de capital humano e conseqüente aumento de produtividade.
A pressão fiscal daí decorrente imporá novas restrições à expansão do investimento público, especialmente em infra-estrutura. Isso terá efeito nocivo sobre a competitividade da economia e a capacidade de crescimento, estreitando a margem para a geração de oportunidades para as camadas mais pobres. Conta a lenda de que um sábio teria mandado seu discípulo lançar ao precipício uma vaca que constituía a única fonte de alimento de uma família muito pobre. Consternado, o discípulo cumpriu a ordem. E, depois de certo tempo, constatou que a mesma família havia prosperado mediante árduo trabalho e empreendimento.
No mundo real, as coisas não são bem assim. A engenharia social evoluiu o suficiente para demonstrar a necessidade de medidas de atenuação da indigência. No entanto, quando aplicadas sem os devidos cuidados, terminam servindo à manipulação política e à perpetuação da miséria e do subdesenvolvimento.


GESNER OLIVEIRA, 50, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP, presidente do Instituto Tendências de Direito e Economia e ex-presidente do Cade.
Internet: www.gesneroliveira.com.br
gesner@fgvsp.br


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