São Paulo, domingo, 24 de outubro de 2004

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ARTIGO

A China e o futuro do Brasil

MAURICIO MESQUITA MOREIRA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Muito se tem escrito sobre as maravilhas do milagre chinês e sobre as oportunidades oferecidas por um mercado potencial de 1,3 bilhão de consumidores. O entusiasmo é visível entre os produtores de commodities, que têm desfrutado de vendas e preços recordes, e entre os membros do governo que não se cansam de ressaltar as vantagens políticas e econômicas de uma aproximação com os chineses. Não há nada de fundamentalmente errado com esse entusiasmo, a não ser pelo fato que ele tem encoberto outra dimensão não menos importante do milagre chinês: a China como competidora.
Nessa outra dimensão, a palavra-chave é indústria. Gerações de brasileiros cresceram com a noção de que o desenvolvimento do país estaria estreitamente associado à industrialização -e não foi por acaso. Foi por meio da indústria que o país atingiu taxas recordes de crescimento e amadureceu politicamente. Pois bem, a China levanta sérias dúvidas sobre a atualidade dessa visão. É bem verdade que essa não é a primeira vez que isso acontece. Pelo menos três gerações de tigres asiáticos deixaram claro que, se o Brasil realmente desejava seguir crescendo via manufatura, estava fazendo algo de errado. O questionamento chinês, no entanto, vai mais longe e está fundamentado em três características principais da economia chinesa: a oferta de mão-de-obra, o crescimento da produtividade e o grau de intervenção do Estado.
Vejamos a questão da mão-de-obra. A dimensão da população chinesa, combinada com um nível educacional em geral superior ao do Brasil, representa um desafio sem precedentes. A implicação mais imediata é um nível salarial cerca de um terço daquele praticado no país. Como a China tem ainda cerca de 50% da sua mão-de-obra na agricultura, é pouco provável que esse hiato venha a diminuir significativamente em um futuro próximo.
A manutenção de salários relativamente baixos por um período prolongado de tempo permitirá que a China mantenha sua competitividade em produtos intensivos em trabalho por um período maior e em uma escala superior àquela experimentada pelos tigres asiáticos, ao mesmo tempo em que diversifica em direção a produtos mais intensivos em capital e em tecnologia.
O quadro não seria tão preocupante se os salários mais baixos fossem a contrapartida de uma produtividade mais baixa. As evidências nesse sentido são escassas, mas sugerem que se, de fato, a produtividade na indústria brasileira é em geral mais elevada do que na China, essa vantagem é pequena e está longe de compensar a diferença salarial. E para complicar ainda mais as coisas, essa vantagem vem caindo rapidamente, uma vez que o crescimento da produtividade na China tem sido cerca de cinco vezes mais rápido do que no Brasil.
Infelizmente, os problemas não param por aqui. Um desafio tão grande ou maior que o binômio salário/produtividade é o da intervenção agressiva do Estado chinês na economia. Não se trata aqui de discutir se essa intervenção é eficiente ou não do ponto de vista dos chineses, mas sim o fato de que ela gera práticas, digamos, não-convencionais de competição que dificilmente seriam toleradas pela comunidade internacional se fossem praticadas por outro país do Ocidente.
A lista de praticas é grande e o espaço é curto, mas, por exemplo, o Estado chinês provê aos produtores locais uma oferta de crédito favorecido em uma escala tal que faz o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) parecer irrelevante. Os subsídios à pesquisa e ao desenvolvimento são também generosos, socializando os riscos da inovação, ao mesmo tempo em que o governo "olha para o outro lado" quando o assunto é direito de propriedade intelectual. E, para completar o pacote, a política comercial é inspirada nas de outros felinos asiáticos, mas com requintes de socialismo de mercado. Ou seja, para os exportadores, tudo; para os importadores, a lei. E a lei é extremamente complicada, principalmente se o importador não tiver um bom contato com o partido ou se não puder contar com o poder de persuasão de um governo como o norte-americano.

Não à corrupção
Diante desse quadro, a pergunta que se faz é: como o país deve reagir a esse desafio? É preciso ter claro, em primeiro lugar, que, qualquer que seja a resposta, suas implicações vão muito além das relações bilaterais Brasil-China. Na realidade, a resposta deve refletir a maneira que o país vê o seu futuro na divisão internacional do trabalho. Uma opção que tem sido sugerida a outros países latino-americanos poderia ser resumida em uma frase: "Esqueçam a manufatura!".
Na base desse conselho está uma visão de que existem outras vias possíveis de desenvolvimento, baseadas em recursos naturais, que estariam mais próximas da vocação da região. Se essa é a perspectiva que prevalece, o desafio chinês fica muito mais palatável. Brasil e China teriam economias confortavelmente complementares, mas ainda assim caberia ao governo a tarefa, não trivial, de minimizar os custos sociais do encolhimento significativo de um setor que representa hoje cerca de 35% do PIB (Produto Interno Bruto).
Se a percepção que predomina, e a que parece mais correta, é a de que um país como o Brasil -com vasta população para empregar- não pode se dar ao luxo de ser competidor marginal em uma atividade que, nos últimos 200 anos, foi a principal responsável pelo enriquecimento da imensa maioria dos países, a resposta tem de ser radicalmente distinta. A resposta precisa levar em consideração que, com a China no mercado, não há mais tolerância para ambientes macroeconômicos instáveis, juros estratosféricos, carga fiscal elevada, infra-estrutura deficiente e mão-de-obra não-qualificada. Tampouco há tolerância para debates sectários sobre o papel do Estado na economia. É preciso que se desenhem políticas e instituições que sejam ao mesmo tempo capazes de evitar a corrupção e de atuar de forma eficaz em áreas como finanças e tecnologia. Por fim, é preciso que a política comercial reflita essas aspirações industriais e que dê o máximo de prioridade à abertura dos mercados do Norte, ao mesmo tempo em que assume uma atitude mais realista com relação aos competidores do Sul. Cabe, por exemplo, perguntar se interessa ao Brasil, face a tudo que foi dito acima, conceder à China o status de economia de mercado, passo que restringiria em muito nossa capacidade de defesa comercial.
Enfim, se o país acredita que seu futuro e seu desenvolvimento ainda passam pela indústria, é imperativo que a percepção sobre a China deixe de ser unidimensional e idealizada. A emergência dos chineses no mercado internacional congestionou perigosamente a via industrial para o desenvolvimento. A resposta tem de ser rápida e à altura, até porque há outros choques -tais como o da Índia- a caminho.


Mauricio Mesquita Moreira é economista do Departamento de Integração do BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento).


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