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OPINIÃO ECONÔMICA
A luzinha do celular
JOÃO SAYAD
Posso cantar e ouvir "Chão
de Estrelas" sem pagar nada.
Pitágoras nunca recebeu nenhum
tostão pelo teorema nem o prof.
Sabin pela vacina antipólio. Não
prejudico ninguém: todos podem
ouvir a mesma música, conhecer
o mesmo teorema e tomar a vacina. É difícil vender conhecimento
e arte pelo preço que represente o
verdadeiro valor dessas coisas.
Conhecimento e arte são bens
públicos.
As universidades têm a função
de ensinar e aprender em todas as
áreas do conhecimento humano
-teologia e humanidades, ciências e artes. Formam professores
capazes tanto de produzir, copiar,
entender e criticar novos conhecimentos e novas expressões artísticas quanto ensinar aos alunos e a
sociedade.
Não conseguem "cobrar" pelos
serviços prestados pois são públicos, isto é, podem ser "roubados"
ou usados por qualquer um.
Por isso, as melhores universidades do mundo são públicas.
Harvard, Yale, Cambridge, a
Universidade de Paris, do México, de Tel Aviv e de São Paulo são
financiadas pelo governo ou por
doações particulares. São organizações sem fins lucrativos, porque
não conseguem "vender" o que
produzem. Não dão lucro. Somos
todos "consumidores" dos seus
serviços, e muitas fortunas do setor privado são feitas a partir dos
conhecimentos criados pela universidade: a Microsoft, a Monsanto, a Embraer, a Petrobras e
muitas outras.
Será que a universidade brasileira pública não poderia diminuir um pouco o seu peso nas despesas do governo federal, cobrando anuidades dos alunos cujas famílias ganham mais do que a
renda média (R$ 850 por mês)?
Não pode.
Boa universidade é feita de três
coisas: bons professores, bons alunos e boas bibliotecas. Bons alunos são escolhidos por mérito, e
não porque podem ou não podem
pagar.
Nos EUA a universidade pública tem alunos que aparentemente
"pagam". Mas os bons alunos são
de fato "comprados" com bolsas
distribuídas generosamente pelas
universidades, como os times de
futebol que gastam fortunas com
bons jogadores.
A universidade americana é
gratuita para bons alunos que
criam o ambiente propício para
ensino e aprendizado. Na escola
primária americana, alunos de
regiões mais ricas são transportados compulsoriamente por ônibus
("busing") para melhorar o nível
e o ambiente das escolas de regiões mais pobres.
Em geral, bons alunos vêm de
famílias com maior formação
educacional, o que pode coincidir
com os grupos mais ricos. Bons
alunos de certa forma também
são bens públicos.
O que aconteceria com a universidade brasileira se começássemos a fazer justiça no país (de forma fragmentada e começando,
por azar, pela educação universitária) aceitando como gratuitos
apenas alunos de famílias que
não pudessem pagar e cobrando
anuidades dos alunos que podem
pagar?
O passe dos melhores alunos poderiam ser "comprados" com bolsas das universidades pagas e lucrativas. O nível da universidade
pública cairia. O aluno que não
pode pagar frequentaria uma
universidade de pior qualidade.
Resultado: ficaríamos com uma
universidade pior, com um pouco
mais de dinheiro e muito menos
bons alunos. O dinheiro adicional
continuaria sendo insuficiente
para financiar pesquisas, áreas
básicas de conhecimento, o professor de física quântica ou o teórico brilhante que não dá aulas.
Todos perdem. Perde você, que
não tem filhos na escola, mas passaria a viver num país com juízes,
cineastas, senadores, poetas, médicos e ministros com formação
de menos qualidade.
Mesmo que não usemos o serviço de nenhum desses profissionais
diretamente eles estão aí, pelo
país, modificando, com seus conhecimentos, a qualidade de todas as áreas da vida nacional.
Nesta noite, quando for dormir,
deixe o celular ligado na tomada
e apague todas as luzes do quarto.
A luzinha minúscula do celular é
capaz de iluminar o quarto todo.
Nem precisa acender o abajur para ir ao banheiro. Bem público é
como luz -atinge todos, mesmo
que focalizada num ponto qualquer.
A universidade pública brasileira é a mesma coisa. Uma pequena luzinha de conhecimentos básicos, de humanidades e de ciências que os sovinas pensam que
"iluminam" mais alunos com
renda acima da miserável média
brasileira, mas que de fato iluminam toda a imensa sombra nacional causada pelos economistas
"economizadores" e por tantos
anos de estagnação.
Em tempo: o orçamento das
universidades e de todos os centros de pesquisa federais será de
R$ 9 bilhões em 2004. Em 2003,
gastamos R$ 160 bilhões com o
pagamento dos juros da dívida
pública federal.
João Sayad, 57, economista, é professor
da Faculdade de Economia e Administração da USP. Escreve às segundas-feiras, a
cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail - jsayad@attglobal.net
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