UOL


São Paulo, segunda-feira, 24 de novembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

A luzinha do celular

JOÃO SAYAD

Posso cantar e ouvir "Chão de Estrelas" sem pagar nada. Pitágoras nunca recebeu nenhum tostão pelo teorema nem o prof. Sabin pela vacina antipólio. Não prejudico ninguém: todos podem ouvir a mesma música, conhecer o mesmo teorema e tomar a vacina. É difícil vender conhecimento e arte pelo preço que represente o verdadeiro valor dessas coisas.
Conhecimento e arte são bens públicos.
As universidades têm a função de ensinar e aprender em todas as áreas do conhecimento humano -teologia e humanidades, ciências e artes. Formam professores capazes tanto de produzir, copiar, entender e criticar novos conhecimentos e novas expressões artísticas quanto ensinar aos alunos e a sociedade.
Não conseguem "cobrar" pelos serviços prestados pois são públicos, isto é, podem ser "roubados" ou usados por qualquer um.
Por isso, as melhores universidades do mundo são públicas. Harvard, Yale, Cambridge, a Universidade de Paris, do México, de Tel Aviv e de São Paulo são financiadas pelo governo ou por doações particulares. São organizações sem fins lucrativos, porque não conseguem "vender" o que produzem. Não dão lucro. Somos todos "consumidores" dos seus serviços, e muitas fortunas do setor privado são feitas a partir dos conhecimentos criados pela universidade: a Microsoft, a Monsanto, a Embraer, a Petrobras e muitas outras.
Será que a universidade brasileira pública não poderia diminuir um pouco o seu peso nas despesas do governo federal, cobrando anuidades dos alunos cujas famílias ganham mais do que a renda média (R$ 850 por mês)?
Não pode.
Boa universidade é feita de três coisas: bons professores, bons alunos e boas bibliotecas. Bons alunos são escolhidos por mérito, e não porque podem ou não podem pagar.
Nos EUA a universidade pública tem alunos que aparentemente "pagam". Mas os bons alunos são de fato "comprados" com bolsas distribuídas generosamente pelas universidades, como os times de futebol que gastam fortunas com bons jogadores.
A universidade americana é gratuita para bons alunos que criam o ambiente propício para ensino e aprendizado. Na escola primária americana, alunos de regiões mais ricas são transportados compulsoriamente por ônibus ("busing") para melhorar o nível e o ambiente das escolas de regiões mais pobres.
Em geral, bons alunos vêm de famílias com maior formação educacional, o que pode coincidir com os grupos mais ricos. Bons alunos de certa forma também são bens públicos.
O que aconteceria com a universidade brasileira se começássemos a fazer justiça no país (de forma fragmentada e começando, por azar, pela educação universitária) aceitando como gratuitos apenas alunos de famílias que não pudessem pagar e cobrando anuidades dos alunos que podem pagar?
O passe dos melhores alunos poderiam ser "comprados" com bolsas das universidades pagas e lucrativas. O nível da universidade pública cairia. O aluno que não pode pagar frequentaria uma universidade de pior qualidade.
Resultado: ficaríamos com uma universidade pior, com um pouco mais de dinheiro e muito menos bons alunos. O dinheiro adicional continuaria sendo insuficiente para financiar pesquisas, áreas básicas de conhecimento, o professor de física quântica ou o teórico brilhante que não dá aulas.
Todos perdem. Perde você, que não tem filhos na escola, mas passaria a viver num país com juízes, cineastas, senadores, poetas, médicos e ministros com formação de menos qualidade.
Mesmo que não usemos o serviço de nenhum desses profissionais diretamente eles estão aí, pelo país, modificando, com seus conhecimentos, a qualidade de todas as áreas da vida nacional.
Nesta noite, quando for dormir, deixe o celular ligado na tomada e apague todas as luzes do quarto. A luzinha minúscula do celular é capaz de iluminar o quarto todo. Nem precisa acender o abajur para ir ao banheiro. Bem público é como luz -atinge todos, mesmo que focalizada num ponto qualquer.
A universidade pública brasileira é a mesma coisa. Uma pequena luzinha de conhecimentos básicos, de humanidades e de ciências que os sovinas pensam que "iluminam" mais alunos com renda acima da miserável média brasileira, mas que de fato iluminam toda a imensa sombra nacional causada pelos economistas "economizadores" e por tantos anos de estagnação.
Em tempo: o orçamento das universidades e de todos os centros de pesquisa federais será de R$ 9 bilhões em 2004. Em 2003, gastamos R$ 160 bilhões com o pagamento dos juros da dívida pública federal.


João Sayad, 57, economista, é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP. Escreve às segundas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.

E-mail - jsayad@attglobal.net


Texto Anterior: Saiba mais: Choque do Plano Collor foi o maior da história do país
Próximo Texto: Publicidade: Agências disputam contas de cervejarias
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.