São Paulo, quarta-feira, 25 de fevereiro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

Lendo Stiglitz, pensando Brasil

ANTONIO BARROS DE CASTRO

Confesso que dificilmente leio sobre outras economias sem que, a cada passagem, contrastes e semelhanças com o caso brasileiro me venham à cabeça. Tendo a atribuir o cacoete aos muitos anos que dediquei ao ensino e à pesquisa neste terreno. O último livro de Joseph Stiglitz, centrado sobre a experiência norte-americana dos anos 90 ("The Roaring Nineties", W.W. Norton & Company, 2003), porém, levou-me muito mais longe. Algumas passagens poderiam aparentemente ser transpostas, quase sem retoques, para o caso brasileiro.
Começo pelo que me parece trazer em si uma grande surpresa.
O primeiro governo Clinton, iniciado em janeiro de 1993 e que tinha Stiglitz como chefe do Conselho de Assessores Econômicos, centrou seus esforços em algo que ninguém imaginaria ser o objetivo maior da nova administração: a eliminação do déficit fiscal. Tratava-se, afinal, de um governo democrata (auto-referido, no entanto, como Novo Democrata), cujo slogan de campanha havia sido "empregos, empregos e empregos" e que encontrava a economia norte-americana apenas saindo da recessão. Stiglitz, aliás, não deixa dúvidas sobre a sua própria frustração e chega a declarar que o novo governo havia sido eleito sobre a plataforma "colocando o povo primeiro, e não pondo os interesses financeiros primeiro" (pág. 25).
Farei dois comentários sobre esse intrigante episódio.
Primeiramente, se há uma unanimidade a respeito do espinhoso tema que acaba de ser tocado, é que economias como a nossa, dependentes, endividadas etc., são levadas a fazer políticas de refreamento ou contenção da demanda global, mesmo quando a lógica econômica (bem como a sensibilidade política) recomende que o nível de atividades seja estimulado. Já uma economia dominante -sobretudo, claro, os EUA-, diante de sinais recessivos, pode permitir estimular a demanda global, visando reerguer o nível de atividades. Stiglitz, contudo, mostra, a contragosto, que a realidade está longe de ser assim. E por quê? Pasme o leitor: em decorrência da agenda dos falcões do déficit, para quem era preciso "escutar o que os mercados financeiros querem -pois, se você perder o seu apoio ("alienate them'), estará perdido" (pág. 44).
A segunda observação consiste em que a política macroconservadora de Clinton, se não deu alento, pelo menos coincidiu com o ingresso da economia no seu maior período de expansão em mais de 30 anos, no qual chegou a exibir taxas anuais de crescimento do PIB superiores a 4%. A esse propósito, Stiglitz se empenha em mostrar que as razões do êxito não residem na política macroeconômica do novo governo, e sim em outros fatores -entre eles, destacadamente, a mera sorte. Mostra, além disso, que os republicanos combateram no Congresso, implacavelmente, a política conservadora do novo governo -ao que acrescenta, com duvidosa coerência, que eles haviam deixado "o trabalho sujo para Clinton" (página 47).
A segunda questão a ser aqui mencionada, e que mais uma vez remete aos dilemas atuais da economia brasileira, se refere aos primeiros anos do crescimento na década de 90.
Temeroso quanto ao possível retorno da inflação, o Fed passou a elevar firmemente os juros, em 1993. Diversos analistas temiam, em contraposição, que a precoce guinada da política monetária (que levaria o juro básico de 3% ao ano, ao final de 1993, para 6% ao ano, em 1995) mataria a expansão recém-surgida. Como mostra Stiglitz numa das passagens mais instigantes do livro, ambos estavam errados. O crescimento da economia norte-americana foi se elevando, de 3% para 4%, e mesmo 5% ao ano. Enquanto isso, "aqui estava o real milagre na perspectiva do Fed -a inflação manteve-se moderada" (página 77).
Ao que parece, ambos cometiam o mesmo tipo de equívoco: subestimavam o potencial expansivo da economia. Era, afinal, a maior capacidade de crescer que permitia à economia norte-americana (contra as expectativas de Stiglitz) resistir à substancial alta dos juros (enquanto o México sucumbiria). Era, também, o maior potencial de crescimento -e, mais precisamente, o maior ritmo de aumento da produtividade- que permitia que a economia se expandisse, rapidamente, sem pressão inflacionária (diferentemente das suposições do Fed).
No Brasil, o potencial de crescimento também pode ter se elevado, substancialmente, em relação aos últimos 20 anos -dados a reestruturação das empresas e o considerável êxito no ajuste macroeconômico. Se assim for, a exemplo do ocorrido nos Estados Unidos, podemos estar incorrendo em graves erros de previsão -e sendo desnecessariamente pessimistas em relação às possibilidades de crescimento desta economia.


Antonio Barros de Castro, 65, professor titular da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e ex-presidente do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), escreve às quartas, a cada 15 dias, nesta coluna.


Texto Anterior: Cai aprovação americana ao livre comércio
Próximo Texto: O vôo da águia: Emprego derruba confiança nos EUA
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.