São Paulo, domingo, 25 de abril de 2004

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DEZ ANOS DE REAL

Federal Reserve, banco central dos EUA, já achava muito provável uma desvalorização da moeda brasileira

Greenspan previu em 98 o colapso do real

GIULIANO GUANDALINI
DA REDAÇÃO

O Federal Reserve, o todo-poderoso banco central americano, já previa o colapso do real meses antes da crise de janeiro de 1999, que acabou levando à desvalorização da moeda e à adoção do regime de câmbio flutuante. Para o Fed, o colapso brasileiro poderia afetar toda a região, com repercussões até mesmo nos EUA.
As revelações constam das transcrições das reuniões do Fed em 1998. Os documentos, inéditos até agora, foram divulgados na quinta-feira, respeitando a praxe de manter o sigilo durante cinco anos.
"Os riscos na situação do Brasil são significativos. Três semanas atrás, teria dito que a situação do Brasil era realmente perigosa. Manter a taxa de câmbio será muito difícil. Uma moeda que está sob pressão, com juros de 40% ou 30%, déficit no balanço de capitais e programas que supostamente sejam bons no lado fiscal, sugere que alguma coisa não vai bem. Preocupa-me que talvez não tenhamos visto o pior."
Assim disse Alan Greenspan, o presidente do Fed, no dia 17 de novembro de 1998, na reunião do comitê de política monetária da instituição, o Fomc (Federal Open Market Committee).
Aquela reunião ocorreu quatro dias depois de o Brasil ter fechado um acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional), mas, mesmo assim, o ceticismo em relação à política cambial brasileira era grande. Para o Fed, o colapso do real era altamente provável, como os diretores manifestaram nas reuniões de setembro, outubro, novembro e dezembro de 98.
No ano seguinte, o regime cambial acabou implodindo. No dia 13 de janeiro de 1999, sob um forte ataque especulativo, o governo brasileiro teve de ceder e optou pelo câmbio flutuante. O socorro de US$ 41,5 bilhões, concedido pelo FMI e outros organismos multilaterais no ano anterior, não se mostrou suficiente para sustentar a política de real valorizado.

Bola da vez
Havia, entre os diretores do Fed, a percepção de que, após a crise cambial dos países asiáticos em 97 e da moratória da Rússia em 98, o Brasil seria a bola da vez. Os temores só arrefeceram um pouco em dezembro, após o país fechar um acordo emergencial com o FMI.
Os receios quanto à sustentabilidade da política brasileira começaram a preocupar o Fed mais intensamente em setembro. Edwin Truman, ex-diretor da divisão de finanças internacionais do Fomc, resumiu a questão assim: "Os brasileiros têm basicamente três problemas: problema fiscal, problema do sistema financeiro e problema de competitividade".
Mas, naquele momento, existia a expectativa de que o país pudesse evitar o pior cenário caso reduzisse o déficit fiscal. Para Truman, o real estava sobrevalorizado em apenas 15% e havia a possibilidade de o país desvalorizar a moeda "de maneira ordenada".
A reunião de setembro do Fed ocorreu às vésperas do primeiro turno da eleição presidencial brasileira, na qual Fernando Henrique Cardoso conquistou o segundo mandato, vencendo Lula.
Na opinião dos diretores do Fed, não era provável que o governo tivesse a intenção de mexer no câmbio. "O Brasil terá eleição no domingo, então não imagino que o presidente vá dizer que pretende desvalorizar [o real]", disse Truman. "Nem imagino que queiram desvalorizar. Na verdade, estão estudando ampliar a banda [de desvalorização]."
Havia um clima de crise financeira no ar na segunda metade daquele ano. Os mercados, tensos, especulavam sobre quem seria a próxima vítima. Na reunião de agosto, os diretores do Fed admitiram que subestimaram o contágio da crise asiática, inclusive sobre o Brasil.
Diante da instabilidade, Greenspan convocou duas teleconferências de emergência, a primeira em 21 de setembro e a segunda em 15 de outubro, para discutir a necessidade de reduções nas taxas de juros. A turbulência nos mercados se acentuou com o colapso do fundo de investimentos Long Term Capital Management.
O Fed acabou cortando os juros três vezes durante aquele período. Entre outras justificativas para a decisão, os diretores do Fed citaram as possíveis conseqüências de uma crise cambial no Brasil.
As estimativas quanto ao Brasil começaram a ficar francamente negativas em novembro. Na reunião daquele mês, a diretora Karen Johnson apresentou projeções sobre o impacto que um eventual colapso do Brasil teria na economia norte-americana.
Johnson, então diretora da divisão internacional, afirmou que havia a possibilidade de sucesso do acordo com o FMI. Mas afirmou que existia a possibilidade de um "outro cenário", como o "derretimento brasileiro e contágio em toda a região".
"Nesse caso, sem ajuste aqui [nos EUA], o crescimento do PIB americano seria reduzido em 0,5 ponto percentual em 99 e 0,75 ponto percentual em 2000", comentou a diretora.
Johnson falava sobre as possibilidades de fuga de capitais, o que acabou ocorrendo. Comentou ainda que o PIB brasileiro teria uma queda, por causa das elevadas taxas de juros e do aperto nos gastos públicos previstos no acordo com o Fundo.
O Brasil dominou boa parte das discussões na reunião de novembro do Fomc. Diretores citaram a iminência de um desastre financeiro no país como fonte de estresse para os mercados financeiros. Discutiram ainda o acordo com o FMI e especularam sobre o alcance do contágio em outros mercados no caso de um colapso.
Greenspan, em sua intervenção, afirmou que havia conversado com vários banqueiros dos EUA e que as instituições não se mostravam propensas a continuar emprestando dinheiro para o Brasil.
De acordo com o presidente do Fed, os bancos só estavam dispostos a assumir riscos se os demais também o fizessem. Para Greenspan, havia 50% de chances de o Brasil entrar em colapso.
No mês seguinte, Johnson se mostrou mais otimista. Disse que o pacote do FMI evitara uma crise na América Latina e que, graças ao socorro, o regime cambial continuava de pé. Muitos do diretores do Fed seguiram céticos na reunião do dia 22 de dezembro. Menos de um mês depois, real forte era coisa do passado.


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