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São Paulo, domingo, 25 de maio de 2003

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LUÍS NASSIF

Os doces transgressores

No meu tempo de adolescente, período fértil em agitação política e fermentação de idéias, uma das melhores parcerias no interior era entre nós, os estudantes, e os da noite, os boêmios amigos que nos ensinavam os primeiros movimentos da boemia, apresentavam-nos músicas de bom gosto, um ou outro modismo intelectual e o ceticismo noturno contra tudo o que viesse do dia.
No final dos anos 60, Poços ainda era uma cidade diferenciada. Nas férias recebia um turismo algo sofisticado, um povo de São Paulo que adorava música de qualidade, que ia ouvir no Bachianinha, o bar em que minha geração se iniciou na boemia.
Lá havia o piano especial do João Viviani, que hoje em dia compõe choros sofisticados em Ribeirão Preto. Havia a voz boêmia do Laércio Brito e a voz de cantora da noite da Iara, rouca como uma Nora Ney das Alterosas. E havíamos nós, os jovens atrevidos, o piano do Dartagnan, a bateria do Paulinho Caneta, o violão técnico do meu primo Oscarzinho e meu violão capenga.
Mas a parte melhor da noite nem éramos nós os músicos, os experientes e os iniciantes, mas os meus amigos boêmios. Havia o Caio Lobato, dono da memória histórica de Poços de Caldas, o Chavinho, advogado e emérito recitador de poemas de Olavo Bilac. E, claro, as coroas que nos aguardavam no começo da madrugada, um pessoal que já tinha passado dos 25 anos (!) e nos tratava a nós, meros adolescentes de 18 anos, com respeito, consideração e paciência.
Iara era dona do Bachianinha, uma dona de boteco de primeira, morena linda, cativante, jeito de índia, que nem sua irmã Moema. Havia as primas do Zé Grandão, lá de Santa Rita de Caldas, a Dalvinha, novinha da silva. E havia a Goga, nossa guru maior na companhia inseparável de Fernandinho, ator nas horas vagas, garçom nas horas noturnas.
Ambos, Fernandinho e Goga, eram nossas referências quando chegávamos de madrugada a Poços, depois da semana dura em São Paulo, com sede de bebida, de Poços e de amigos. Era perguntar onde eles estavam que o resto da turma estava lá em volta.
Goga era metódica. Começava a noite, ela pagava antecipadamente três ou quatro doses de uísque, enchia o copo de gelo até a boca, colocava sua luva de crochê, para evitar o reumatismo provocado pelo copo gelado, e ficava bebericando a noite inteira. Tratava-me por "turco". Fernandinho não era chegado na bebida, mas derretia-se à noite com as conversas de bar. Ele me chamava de "Lu".
Foi com eles que aprendi o ritual da boemia, a valorizar os da noite, a curtir sua conversa, a me encantar com a falta de ansiedade e de competição, o oposto dos homens do dia. É verdade que havia que se ter paciência para suportar as crises existenciais que sempre afloravam depois do terceiro uísque. Mas fazia parte.
Na época em que nossa turma frequentava o Bachianinha, muitos moralistas de interior iam alertar meu pai para o risco das más companhias. Só soube anos depois, porque o velho nunca entrou nesse jogo.
Mas o preconceito era recíproco. Goga e Fernandinho eram amigos de toda hora, menos na hora de ir a algum ambiente mais "seleto". Aí escafediam. Nada os fazia entrar no Castelões e outros ambientes frequentados pela granfinangem poçoscaldense. E posso afiançar que nossa "elite" nada tinha de enjoada. De qualquer forma, respeitávamos suas idiossincrasias.
Por isso mesmo, a maior homenagem que já recebi de um amigo foi quando a Caldense deu o nome de meu pai para sua biblioteca, por indicação do Décio Alves de Morais. Estava em Caxias do Sul de manhã, não deu teto no aeroporto, tive que ir de ônibus para Porto Alegre, pegar avião e desembarcar em Guarulhos, onde o carro me esperava com a família.
Cheguei em cima da hora, o salão do clube lotado. Na porta, me esperando, passando por cima de todas as suas implicâncias, meus amigos Goga e Fernandinho.
Fernandinho morreu dia desses do coração. Minha amiga Goga está enfrentando alguns problemas de saúde. Mas nem venha com falseta, porque em Corpus Christi vamos em turma para Poços, relembrar velhas canções, velhas paixões e rever os amigos de toda a vida.

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