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LUÍS NASSIF
O "baixo" da música brasileira
Na coleção preciosa, pego
um CD ao acaso. É Roberto
Martins. A voz é fraca, de velho
tomado pela emoção. O cavaquinho puxa o centro, o pandeiro
acentua discretamente o ritmo, e
ele começa. "Cai, Cai" ("Cai, cai,
eu não vou te levantar", só dele),
"Meu Consolo É Você" ("Meu
consolo é você, meu grande
amor / eu explico por quê", dele e
Nássara), "Adeus, Mocidade"
("Adeus, minha mocidade,
adeus / passado que me deixou
saudade", dele e Benedito Lacerda). Depois, a voz fraca vai respondendo às perguntas em
"off", contando que gravou 354
músicas em mais de 50 anos de
carreira. E continua com "Favela" ("Favela, oi, favela / favela que
mora no meu coração", dele e
Waldemar Silva), "O Cordão dos
Puxa-Sacos" (dele e E. Frazão), o
clássico imperdível, "Beija-me"
("Beija-me, deixa teu rosto coladinho ao meu", com Mário Rossi), e, para meu encantamento
pessoal, a valsa que me lembrava
minha mãe, "Último Beijo" ("Na
carta nem o nome ela escreveu /
adeus, e torturando o meu desejo", com Jorge Faraj), uma letra
belíssima que, tenho a impressão, foi trocada por Martins, pois
está diferente da gravação que
tenho de Carlos Galhardo.
Poderia ficar só com ele neste
domingo, mas são 25 CDs, com
músicas e depoimentos dos mais
importantes compositores brasileiros do século, de Paraguaçu à
bossa nova. Trata-se da coleção
"A Música Brasileira deste Século, por seus autores e intérpretes", bancada pelo Sesc São Paulo (hoje o mais importante centro de cultura da música popular
brasileira, ao lado do Centro Cultural do Banco do Brasil), com
produção do Pelão, em cima de
três décadas de programas de
Fernando Faro, o "baixo".
Da minha adolescência até hoje, há um conjunto muito restrito
de obras fundamentais para entender a música brasileira. No
início dos anos 70, a coleção de
fascículos da Abril. Dos anos 80
em diante, o selo "Revivendo",
de Curitiba. Tem a produção da
rádio MEC e da TV Educativa do
Rio, mas que não chegava a São
Paulo nem a Poços. E a obra de
Fernando Faro, as entrevistas
nas quais o entrevistado reinava
soberano, sem sequer ter a voz
do entrevistador poluindo o ambiente.
Conheci Faro no final dos anos
60. Eu era um adolescente petulante, secundarista que vinha
com carta da Faculdade de Filosofia de Poços de Caldas para poder me inscrever nos festivais
universitários da Tupi.
A Tupi vivia ainda seus momentos de glória. A TV Record,
dos Machado de Carvalho, havia
conseguido grande destaque
com seus festivais, atraindo todo
o primeiro time da MPB. Mas a
Tupi não ficava atrás. Com seus
festivais universitários e a Feira
Permanente da Música Brasileira, Faro abria espaço para todos
os jovens compositores que não
conseguiam caminhar no congestionamento de estrelas da Record.
Poucos produtores de televisão
tinham o prestígio de Faro. Em
seus programas havia espaço para Beth Carvalho (que na época
ainda não havia aderido ao pagode e ao samba), para os jovens
compositores paulistas, como
Eduardo Gudin, Abílio Manuel,
para os veteranos paulistas, como Adoniran, e para clássicos
que estavam prestes a explodir,
como Paulinho da Viola, Jorge
Benjor e Gonzaguinha.
Seu júri eclético era compartilhado por vanguardistas como
os talentosos maestros Damiano
Cozella, Willy Correa de Oliveira, Rogério Duprat e Júlio Medaglia, e críticos convencionais.
Lembro-me do primeiro festival em que consegui emplacar
duas músicas, uma valsinha e
um frevinho. Cheguei de Poços
inibidíssimo de estar no mesmo
ambiente de meus ídolos e fui ser
entrevistado pelo Faro. ""Baixo"
(era assim que ele se referia a todos), quem você quer de intérprete para sua valsa?" Pensei em
alguma cantora iniciante, e a Tupi era pródiga nelas. "Serve Os
Três Morais?", perguntou com
ar distraído. Ora, na época Os
Três Morais era o que havia de
melhor, especialmente Jane e sua
voz límpida.
Voltei para Poços pisando nas
nuvens. Bem, o que aconteceu
depois não foi culpa dele -os
dois irmãos do trio, preocupados em entregar a declaração do
Imposto de Renda, não ensaiaram a música, e a apresentação
ficou restrita a Jane.
Pois com aquele prestígio todo,
o "baixo" Faro era o mesmo tratando com Elis ou com jovens
adolescentes do interior. Sempre
o jeito aparentemente distraído,
traído pelo olhar vivo, agitado,
os dentes denotando um fumante compulsivo, e os modos de
quem sabe tudo da vida e da música. E nunca emitindo conceitos, preconceitos ou arrogância.
Apenas fazendo e fazendo, e ajudando a construir a música popular brasileira.
Email - lnassif@uol.com.br
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