São Paulo, domingo, 25 de junho de 2000


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LUÍS NASSIF

O "baixo" da música brasileira

Na coleção preciosa, pego um CD ao acaso. É Roberto Martins. A voz é fraca, de velho tomado pela emoção. O cavaquinho puxa o centro, o pandeiro acentua discretamente o ritmo, e ele começa. "Cai, Cai" ("Cai, cai, eu não vou te levantar", só dele), "Meu Consolo É Você" ("Meu consolo é você, meu grande amor / eu explico por quê", dele e Nássara), "Adeus, Mocidade" ("Adeus, minha mocidade, adeus / passado que me deixou saudade", dele e Benedito Lacerda). Depois, a voz fraca vai respondendo às perguntas em "off", contando que gravou 354 músicas em mais de 50 anos de carreira. E continua com "Favela" ("Favela, oi, favela / favela que mora no meu coração", dele e Waldemar Silva), "O Cordão dos Puxa-Sacos" (dele e E. Frazão), o clássico imperdível, "Beija-me" ("Beija-me, deixa teu rosto coladinho ao meu", com Mário Rossi), e, para meu encantamento pessoal, a valsa que me lembrava minha mãe, "Último Beijo" ("Na carta nem o nome ela escreveu / adeus, e torturando o meu desejo", com Jorge Faraj), uma letra belíssima que, tenho a impressão, foi trocada por Martins, pois está diferente da gravação que tenho de Carlos Galhardo.
Poderia ficar só com ele neste domingo, mas são 25 CDs, com músicas e depoimentos dos mais importantes compositores brasileiros do século, de Paraguaçu à bossa nova. Trata-se da coleção "A Música Brasileira deste Século, por seus autores e intérpretes", bancada pelo Sesc São Paulo (hoje o mais importante centro de cultura da música popular brasileira, ao lado do Centro Cultural do Banco do Brasil), com produção do Pelão, em cima de três décadas de programas de Fernando Faro, o "baixo".
Da minha adolescência até hoje, há um conjunto muito restrito de obras fundamentais para entender a música brasileira. No início dos anos 70, a coleção de fascículos da Abril. Dos anos 80 em diante, o selo "Revivendo", de Curitiba. Tem a produção da rádio MEC e da TV Educativa do Rio, mas que não chegava a São Paulo nem a Poços. E a obra de Fernando Faro, as entrevistas nas quais o entrevistado reinava soberano, sem sequer ter a voz do entrevistador poluindo o ambiente.
Conheci Faro no final dos anos 60. Eu era um adolescente petulante, secundarista que vinha com carta da Faculdade de Filosofia de Poços de Caldas para poder me inscrever nos festivais universitários da Tupi.
A Tupi vivia ainda seus momentos de glória. A TV Record, dos Machado de Carvalho, havia conseguido grande destaque com seus festivais, atraindo todo o primeiro time da MPB. Mas a Tupi não ficava atrás. Com seus festivais universitários e a Feira Permanente da Música Brasileira, Faro abria espaço para todos os jovens compositores que não conseguiam caminhar no congestionamento de estrelas da Record.
Poucos produtores de televisão tinham o prestígio de Faro. Em seus programas havia espaço para Beth Carvalho (que na época ainda não havia aderido ao pagode e ao samba), para os jovens compositores paulistas, como Eduardo Gudin, Abílio Manuel, para os veteranos paulistas, como Adoniran, e para clássicos que estavam prestes a explodir, como Paulinho da Viola, Jorge Benjor e Gonzaguinha.
Seu júri eclético era compartilhado por vanguardistas como os talentosos maestros Damiano Cozella, Willy Correa de Oliveira, Rogério Duprat e Júlio Medaglia, e críticos convencionais.
Lembro-me do primeiro festival em que consegui emplacar duas músicas, uma valsinha e um frevinho. Cheguei de Poços inibidíssimo de estar no mesmo ambiente de meus ídolos e fui ser entrevistado pelo Faro. ""Baixo" (era assim que ele se referia a todos), quem você quer de intérprete para sua valsa?" Pensei em alguma cantora iniciante, e a Tupi era pródiga nelas. "Serve Os Três Morais?", perguntou com ar distraído. Ora, na época Os Três Morais era o que havia de melhor, especialmente Jane e sua voz límpida.
Voltei para Poços pisando nas nuvens. Bem, o que aconteceu depois não foi culpa dele -os dois irmãos do trio, preocupados em entregar a declaração do Imposto de Renda, não ensaiaram a música, e a apresentação ficou restrita a Jane.
Pois com aquele prestígio todo, o "baixo" Faro era o mesmo tratando com Elis ou com jovens adolescentes do interior. Sempre o jeito aparentemente distraído, traído pelo olhar vivo, agitado, os dentes denotando um fumante compulsivo, e os modos de quem sabe tudo da vida e da música. E nunca emitindo conceitos, preconceitos ou arrogância. Apenas fazendo e fazendo, e ajudando a construir a música popular brasileira.
Email - lnassif@uol.com.br


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