São Paulo, quarta-feira, 25 de agosto de 2004

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ARTIGO

Déficit dos Estados Unidos traz risco global

Stephen Chernin - 23.ago.04/France Presse
Operador em pregão da Bolsa de Valores de Nova York


MARTIN WOLF
DO "FINANCIAL TIMES"

Déficits em conta corrente importam? Já argumentei que é possível que sim. Já que o elevado e crescente déficit em conta corrente dos Estados Unidos é uma das características mais notáveis da economia mundial no momento, decidir se ele importa ou não é uma questão razoavelmente significativa.
O argumento de que os déficits não importam remonta ao ataque de Adam Smith contra o mercantilismo, em "A Riqueza das Nações". O objetivo da atividade econômica é o consumo, insistia, e não a acumulação de tesouros. Os déficits comerciais permitem que um país consuma mais do que produz. Logo são benéficos.
Em termos mais técnicos, com um custo mais baixo de capital do que seria possível sem esse influxo de capitais, os EUA podem desfrutar de padrões de vida superiores. O padrão de vida do resto do mundo também será mais elevado, desde que os retornos de seus investimentos nos EUA superem, em termos de margem, os retornos do consumo doméstico. A exportação de capital do resto do mundo para os EUA, portanto, beneficia a todos os envolvidos.
O argumento é correto, dentro de seus limites. Mas esses limites não se estendem por distância suficiente. Existem três motivos diferentes para que ainda haja preocupação quanto ao déficit: a poupança norte-americana pode cair demais; o resto do mundo talvez esteja desperdiçando seu capital; e inversões de fluxos de capital têm o potencial de desestabilizar a economia mundial.
Lawrence Summers, ex-secretário do Tesouro norte-americano, enfatizou o primeiro desses três pontos em palestras. A poupança norte-americana chegou a um de seus mais baixos patamares em todos os tempos, como proporção do PIB, apontou. A poupança nacional líquida (ou seja, depois de descontada a depreciação) fica em cerca de 2% do PIB. Na prática, isso implica que estrangeiros estejam no momento financiando cerca de três quartos do investimento líquido dos EUA.
Por que esse baixo nível de poupança deveria incomodar os EUA, já que o resto do mundo está disposto a cobrir a diferença? A resposta é que o retorno sobre a poupança estrangeira investida não pertence aos norte-americanos, mesmo que o dinheiro esteja investido nos EUA. Os norte-americanos recebem apenas o retorno sobre sua exígua poupança. Esse baixo nível de poupança impõe restrições a uma melhora futura em seus padrões de vida.
Esse não teria sido o caso se o aumento nos fluxos de capital tivesse resultado em uma alta no volume geral de investimento. Mas a contrapartida de fluxos mais elevados de capital vem sendo consumo público e privado mais alto, e com ele poupança mais baixa, e não uma alta sustentada no nível líquido (ou bruto) de investimento.
O segundo ponto é bastante diferente. O resto do mundo oferece aos EUA mais de um décimo de sua poupança bruta. Uma transferência de poupança dessa escala para o país mais rico do mundo parece perversa. Sugere ineficiência nos mercados de capitais, políticas internas ou ambos.
O terceiro ponto é o risco de reversões desestabilizadoras dos fluxos de capital. Um perigo, ao menos, está descartado. Já que o dólar é a principal moeda do planeta e o principal ativo das reservas cambiais nacionais, os passivos financeiros dos EUA usualmente são denominados na moeda nacional. Os EUA não estão sujeitos aos desequilíbrios cambiais que se provaram tão devastadores para outros países. É por isso que são a fonte de último recurso para a captação internacional.

Depreciação cambial
Mas o fato de os EUA não oferecerem proteção contra a depreciação cambial exacerba os riscos dos credores. Eles poderiam concluir, facilmente, que os norte-americanos precisam de uma considerável depreciação real em sua taxa de câmbio se tiverem de viver com fluxos de capital menores. Talvez uma depreciação considerável seja necessária para que consigam simplesmente estabilizar o seu déficit em conta corrente no patamar atual.
Conscientes disso, os credores privados talvez imaginem se os potenciais retornos sobre os ativos americanos cobrem os riscos gerados por uma exposição cada vez maior. Da mesma forma que houve nos mercados emergentes, o medo de saques por terceiros pode causar uma corrida cambial auto-alimentada. Sem intervenção cambial maciça por parte dos governos mundiais, isso provavelmente já teria acontecido.
Assim, os déficits importam? O mundo precisa que os EUA mantenham um grande déficit em conta corrente para contrabalançar o excesso de poupança em outros países. Além disso, o país talvez seja capaz de manter um déficit considerável talvez tão grande quanto o atual para sempre. Em curto prazo, o imenso déficit fiscal também serviu como grande ajuda. Sem ele, sustentar a demanda americana depois da implosão da bolha nas Bolsas teria requerido um afrouxamento dramático da política monetária e possivelmente a adoção de juros zero. Isso poderia exercer efeitos desestabilizadores sobre o valor do dólar.
Mas há, igualmente, bons motivos para preocupação, e não só quanto à escala do déficit em conta corrente norte-americano. A tendência persistente de alta do déficit como proporção do PIB é igualmente preocupante. Os norte-americanos deveriam se preocupar com o impacto sobre eles dos déficits externos elevados que financiam mais consumo do que investimento. O resto do mundo deveria se preocupar quanto ao seu fracasso em usar a poupança nacional mais produtivamente. Também deveria pensar sobre o potencial de protecionismo norte-americano muito mais forte. Ambos os lados deveriam se preocupar com o potencial de reversões nos fluxos de capital.
A alta constante nos déficits americanos se provou melhor que a alternativa plausível, uma crise econômica mundial. Mas o fato de que a alternativa ao inaceitável seja o insustentável deveria preocupar qualquer observador prudente da economia mundial.


Tradução de Paulo Migliacci

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