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São Paulo, sábado, 25 de outubro de 2003

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LUÍS NASSIF

Burocracia e indústria

Uma das características do pensamento burocrático é só ter foco na própria burocracia. Ou seja, se tenho um problema interno, penso em uma solução que resolva a situação independentemente do impacto sobre o cliente.
No Brasil não existe o direito de cidadania das pequenas empresas. Permanentemente são entupidas por uma saraivada de exigências que tornam o exercício da formalidade uma atividade quase proibitiva. Cria-se a estrutura pesada, a ferocidade legiferante e, em torno dela, passa a coexistir toda uma economia não produtiva, voltada exclusivamente para atender aos trâmites da burocracia.
Anteontem comentei sobre o Perfil Profissiográfico Profissional (PPP), novo documento exigido pelo INSS. O documento será uma espécie de ficha médica do funcionário, que o acompanhará por toda a vida. A intenção era resolver um problema: o da fraude em aposentadorias especiais. Confira o caminho percorrido.
Antes, exigiam-se laudos -PPRA e PCMSO- apenas para as atividades consideradas insalubres. Agora, cria-se o PPP, que englobará os laudos anteriores. Seria uma racionalização, não fosse o fato de que a exigência do PPP será estendida a todas as atividades e empresas -da multinacional ao botequim da esquina. Essa interpretação me foi confirmada por três contadores de São Paulo.
Quem é esse pessoal que atua nessa atividade, da medicina do trabalho? Uma amostra pode ser dada pelo e-mail que recebo de Dário Mello, me intimando a publicá-lo. Confira:
"Publicado ontem [anteontem] em sua coluna, desrespeitosamente e sem quaisquer conhecimentos estatísticos e correlacionados ao INSS, venho novamente exigir explicações lógicas e prudentes:
1) Você é capaz de imaginar que pelo simples fato de ter publicado o texto do PPP muitos empresários estarão descumprindo leis? 2) Por acaso você sabe que o Brasil é recordista mundial de benefícios acidentários? 3) Já observou bem no alto de um prédio algum funcionário de alguma construtora, dependurado sem quaisquer proteções devidas? (...) Então o que tem a me dizer? Você foi ou não foi infeliz em desencorajar o empresário a cumprir a lei? (...) Você deve explicações, Luís! Não seja covarde, responda a este e-mail e publique o correto. Seja um verdadeiro homem em admitir que errou. Obs.: este e-mail está sendo mandado à vossa diretoria, conforme conversações telefônicas com ela".
O dono do boteco onde vou tomar meu café diário disse que jamais funcionário seu foi visto dependurado no alto de construção. Mas terá que pagar pelos laudos.
A empresa do sr. Dário -cujo nome consta no rodapé do e-mail- é especializada em medicina ocupacional e engenharia do trabalho. Liguei para o número de 0800 anotado no e-mail e me apresentei como dono de um restaurante com 20 funcionários. Para obter o PPP, precisaria, antes, do PCMSO, algo que sairia por R$ 120 mensais (R$ 6 mensais por funcionário) ou R$ 1.440 ao ano. Precisaria também de um LTCA, para medir o nível dos ruídos, que custaria de R$ 400 a R$ 500.
Esse é um caso típico do fenômeno burocrático. Tome-se uma boa causa, crie-se uma solução complexa e depois se monte uma indústria em torno dela.

E-mail -
Luisnassif@uol.com.br


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