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ENTREVISTA
PASCAL LAMY
Há riscos de bolha na China e no Brasil
Diretor-geral da OMC elogia emergentes, mas vê indícios de superaquecimento pós-crise
O diretor-geral da Organização Mundial do Comércio está cauteloso, mas é só elogios ao falar
de emergentes. Para Pascal Lamy, esses foram
os países mais bem conduzidos na crise econômica global e sua fatia no comércio mundial, hoje perto de
35%, continuará a crescer se novos obstáculos não surgirem e
se o risco de bolha na China e no Brasil for controlado. Os próximos dados oficiais, aliás, devem mostrar a estreia do país
asiático como maior exportador global, à frente da Alemanha.
E uma retração de só 6% do comércio no bloco em desenvolvimento -a metade da verificada nas nações mais ricas.
LUCIANA COELHO
DE GENEBRA
A OMC espera uma retomada do comércio internacional
neste ano, após suas estimativas indicarem um mergulho
maior que 10% em 2009. Mas
não prevê ainda qual a força.
Os primeiros números oficiais saem em março, mesmo
mês em que a entidade fará um
exercício crucial: reavaliar a decrépita Rodada Doha de liberalização do comércio global.
Se não se constatar avanços,
as negociações poderão ser enterradas finalmente. Embora
Lamy ache bobagem voltar ao
zero após oito anos, ele admite
que as idas e vindas no processo
prejudicaram a credibilidade
do sistema multilateral, objeto
de outros arranhões em 2009.
O francês, que iniciou em setembro seu segundo mandato
de quatro anos, recebeu a Folha em seu gabinete, na gigantesca sede da OMC, na última
sexta. A seguir, seu diagnóstico
do comércio global pós-crise.
FOLHA - Vamos ter uma retomada
do comércio em 2010?
PASCAL LAMY - Com certeza,
pois a base é muito baixa. A pergunta é de quanto, e é cedo para
dizer. Temos de ver como a demanda e a oferta se comportam. Pela estimativa, tivemos
uma queda de mais de 10% em
volume em 2009, que corresponderia a um recuo de 12%
nos países desenvolvidos e de
6% nos em desenvolvimento.
Isso significa que os países em
desenvolvimento foram mais
resilientes.
Primeiro, a economia deles
sofreu menos que a dos desenvolvidos; segundo, sua elasticidade [de renda] no comércio
global é menor por exportarem
mais commodities, e, mesmo
no setor manufatureiro, se especializaram em produtos menos afetados -é mais fácil você
trocar de telefone que de carro.
E o terceiro fator é que, ao
contrário das expectativas, o
protecionismo não subiu fortemente.
FOLHA - Não?
LAMY - Houve casos, você viu
as investigações antidumping.
Por outro lado, alguns países se
abriram mais, como o México e
a Malásia. No saldo, o comércio
internacional é tão aberto
quanto antes da crise.
FOLHA - Quanto dessa resiliência
se ampara na China?
LAMY - Os emergentes foram
mais resilientes em geral. Não
só passaram pela crise como
passaram bem. Conseguiram
instalar políticas anticíclicas
que funcionaram. E eles têm
reservas, acumularam capacidades fiscais e agiram corretamente de forma anticíclica. O
Brasil, pela primeira vez na história, teve uma reação macroeconômica anticíclica apropriada, pois vinha de uma estabilidade pré-crise.
Os países emergentes foram
mais bem conduzidos. Vamos
ver como será o futuro, pois parece haver algum superaquecimento na China e no Brasil
FOLHA - Há risco de bolha?
LAMY - Sempre há. Mas hoje há
instrumentos para evitá-la.
Agora eles têm políticas mais
sofisticadas e melhor administração macroeconômica.
FOLHA - A ampliação da fatia dos
emergentes no comércio internacional é uma tendência para os próximos anos?
LAMY - O peso deles tem aumentado regularmente. O natural é crescer, se não houver
percalços. Se o comércio internacional continuar aberto.
FOLHA - Os EUA estão mais defensivos com isso, sobretudo em relação à China?
LAMY - Embora isso [a busca de
medidas defensivas] tenha sido
contido, houve um pouco mais
de ações antidumping e painéis
[de arbitragem na OMC] pedidos pelos EUA. Isso se deve ao
volume, se o volume é maior há
mais atrito. E esse não é o problema, fricção vai haver, aconteceu entre EUA e Japão nos
anos 80, entre EUA e União Europeia nos anos 90.
A questão é se essas fricções
são tratadas do modo certo.
Há uma relação entre o ciclo
econômico e os mecanismos de
defesa comercial -no topo do
ciclo há menos defesa, na baixa,
mais.
Não estamos a salvo [do protecionismo] ainda, mas os dados mostram que por ora estamos dentro do nível esperado.
FOLHA - Pode piorar?
LAMY - Estou cauteloso. O motor que cria o protecionismo é o
mercado de trabalho, que continuará em baixa neste ano e
talvez no ano que vem. Se esta
crise resultar em mudanças nos
hábitos de consumo, as conexões entre o nível de crescimento e o nível do mercado de
trabalho podem mudar. Se você
tem de produzir algo diferente,
não vai fazer isso de repente.
Mas também há hoje uma noção mais disseminada de que
manter a abertura [comercial]
é importante.
FOLHA - Parece que houve menos
pressões domésticas.
LAMY - Houve pressões sim, só
que se resistiu a elas. Muitos
ministros do Comércio me disseram isso. Há um sistema de
monitoramento hoje, e os ministros podem dizer [a quem
lhes pede ações para proteger a
indústria local]: "Se fizermos
isso, acontece aquilo e pode
acarretar determinada reação".
Isso fez muito pela estabilização [do sistema comercial].
FOLHA - Os governos estão mais
conscientes então?
LAMY - Sim, mas temos de ser
politicamente lúcidos. Há
quem pense que poderia manter seu emprego se houvesse
menos importação. Não há
compreensão [do público] ainda de como funciona [o sistema]. É algo difícil de explicar na
TV em dez segundos.
Outra coisa na relação são as
políticas domésticas, como a
seguridade social. A percepção
das pessoas sobre o comércio
internacional costuma ser melhor em países com mais proteção social, onde é menor o impacto de perder o emprego.
FOLHA - A China vai se consolidar
como líder exportador, como já há
indícios?
LAMY - Sim. Já aconteceu. Se
não, está para acontecer. Mas é
preciso ver que a China pode
ser o maior exportador, mas a
maior parte do que exporta ela
importa. Se você olhar o valor
agregado das exportações, há
relativamente menos que nos
EUA -embora a percepção pública seja outra.
FOLHA - Segundo a Unctad [braço
da ONU para comércio e desenvolvimento], o padrão de investimento
externo no país tem mudado, com
mais dinheiro injetado em serviços.
O mesmo não vai acontecer com o
comércio?
LAMY - Está acontecendo progressivamente, conforme eles
aumentam seu mercado doméstico, embora ainda haja um
índice de poupança muito alto
na China. [Nas exportações],
eles vão produzir mercadorias
de valor agregado mais alto e
aumentar sua indústria de serviços, como aconteceu nas economias desenvolvidas.
FOLHA - O sr. e vários atores na Rodada Doha disseram que 2010 é o
último ano para fechar as negociações. O que o sr. espera que mude
neste ano, se não conseguiram resultados até agora?
LAMY - É uma mistura: preparo
técnico, opções adequadas que
depois têm de ser decididas politicamente. [Os governos] dizem querer concluir em 2010.
Vão reexaminar a situação na
avaliação em março.
FOLHA - É possível que, caso avaliem que os obstáculos continuam
lá, a Rodada Doha renasça como algo diferente?
LAMY - Estamos no sistema internacional, onde você precisa
de mandatos, dos tópicos que
serão negociados. Não acho que
isso possa mudar. A noção de
que devíamos renegociar o
mandato e reequilibrar os tópicos pode ser atraente intelectualmente. Mas não somos
uma universidade, somos uma
instituição internacional. Há
nove anos que negociamos isso,
quase. Eles avançaram 80%.
Voltar à estaca zero não faz
sentido.
FOLHA - Os países não podem arcar
com um fracasso?
LAMY - Depende do que você
chama de fracasso. Negociações internacionais não fracassam nunca.
FOLHA - Podemos passar horas discutindo isso.
LAMY - Mas elas não fracassam, elas se arrastam. Veja a
negociação sobre desarmamento. Está aí há 40, 50 anos.
FOLHA - Houve frustração em Copenhague por não se chegar a um
acordo para conter a mudança climática. Em Roma, as discussões sobre segurança alimentar se arrastaram. Em ambas e na reunião ministerial aqui, muita agente argumentou que a OMC deveria incluir os temas em sua agenda.
LAMY - Comércio e agricultura
e comércio e ambiente já estão
no sistema. Segurança alimentar é um grande tema, que tem
um componente de agricultura,
ligado a comércio internacional. Em ambiente, temos regras, a OMC normalmente se
refere ao comércio que contribua para a sustentabilidade, a
medidas ambientais, temos jurisprudência.
FOLHA - Caso as negociações para
a mudança climática evoluam, elas
podem ter impacto real no comércio
mundial?
LAMY - Houve debate sobre o
impacto de cortes na emissão
de carbono sobre o comércio,
na questão do transporte
-apesar de 90% do comércio
ser pelo mar, o que tem menor
impacto ambiental.
A outra parte do debate é se
as políticas comerciais terão de
ser mudadas se houver acordo
internacional sobre emissão de
carbono. Isso veremos. De
qualquer forma, políticas comerciais isoladas não substituem a disciplina internacional
sobre emissões.
FOLHA - Há ameaça de barreiras
comerciais sob justificativa de poupar o ambiente?
LAMY - Sempre há. Medidas
unilaterais têm de ser tratadas
dentro das regras da OMC.
FOLHA - Para usar sua expressão, o
arrastamento das negociações sobre clima e Doha prejudica a credibilidade do sistema multilateral a que
ponto? Mesmo sem alternativa, a
credibilidade foi abalada.
LAMY - Foi, é verdade. Mas a
maioria das pessoas está acostumada ao sistema político doméstico, com um Parlamento,
um Executivo, a mídia informando e uma decisão da maioria no fim. O sistema internacional não funciona assim. Não
tem ninguém que diga "este é o
interesse geral da população".
FOLHA - Há, mas se ignora.
LAMY - Esse é meu segundo
ponto. Não há essa comunicação com o público, e não há a
decisão da maioria. No sistema
internacional, tudo tem de ser
negociado a cada vez. E hoje
muito mais países se fazem ouvir. O sistema é mais complexo.
Há anos eu digo que há um
abismo entre nossa capacidade
de governança global, que é fraca, e a natureza global dos desafios que temos de encarar.
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