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OPINIÃO ECONÔMICA
Dissonância cognitiva
PAULO RABELLO DE CASTRO
O médico entediou-se com o
circunlóquio do paciente:
"Olha, seu problema é psicológico, pi-si-co-lógico, viu? Volte para
casa e procure relaxar mais". O
paciente pôs a viola no saco, mas,
quando já ia batendo em retirada, deu meia-volta e contra-atacou: "Mas doutor, se eu sinto, de
verdade, algo que eu de fato não
tenho, qual o nome dessa doença?". "Dissonância cognitiva",
respondeu o médico, já meio
agastado. "Todo mundo tem um
pouco disso. Vá para casa e pare
de pensar."
Não sou psicólogo. Mas todos
somos psicológicos. Médico não
tem mesmo paciência com as dores do espírito. Um pouco mais de
espiritismo não faria mal nos
tempos de hoje. Pelo menos ajudaria a dar conforto nos casos de
dissonância cognitiva. Um psicólogo (Leon Festinger) que estudou
profundamente o assunto publicou em 1957 o livro "A Theory of
Cognitive Dissonance", em que
esmiuçou esse fenômeno do comportamento humano.
O conceito da dissonância cognitiva é muito interessante e tem
alta aplicabilidade na identificação de situações incômodas e até
constrangedoras vividas por autoridades econômicas e participantes dos mercados em geral.
Dissonância cognitiva é -me
perdoem os especialistas-, por
assim dizer, um empastelamento
da realidade objetiva. Vivemo-la
um pouco todos os dias, mesmo
porque seria impossível encarar
tudo de frente, tal como é, nu e
cru, sem nenhuma pitada de fantasia, de auto-engano, de algum
descolamento da materialidade
das coisas. Ninguém sabe ao certo, por exemplo, se um determinado traçado de política econômica irá nos levar ao resultado
ideal, mas convém aos mercados
desenvolver certas crenças que
são alimentadas (ou demolidas)
pelas certezas emitidas pelas autoridades incumbidas de conduzir o processo.
São pitorescas, embora trágicas,
algumas passagens envolvendo as
declarações equivocadas de grandes economistas, como Keynes e
Irving Fischer, ou dos então presidente do Fed (Federal Reserve),
secretário do Tesouro e presidente
dos EUA nas suas avaliações subseqüentes ao colapso da Bolsa de
Nova York, em 1929. "Isso vai
passar logo", "nunca os fundamentos foram tão sólidos", "o governo segue sereno em sua política" não são apenas frases de efeito nem declarações insinceras.
São, na pior das hipóteses, dissonância cognitiva. Essa emerge
com mais vigor nos momentos
mais difíceis do homem, quando
o preço da correção do rumo -se
essa é possível- se apresenta
mais gravoso de que o auto-engano. Corrigir o vício do fumo pode
parecer tão duro ao praticante
habitual que as manobras mentais de auto-dissuasão tendem a
prevalecer, assim como "se parar
de fumar, eu engordo".
O país, como um fumante inveterado, se intoxica de tributos de
modo galopante. Se "fumava"
duas a três carteiras por dia de
impostos e contribuições (27% do
PIB), hoje, dez anos passados,
consome perto de quatro carteiras (37% do PIB). Mas, se perguntar ao dono da fumaça o que ele
acha do vício, ele terá contra-alegações tão racionais quanto pouco convincentes. O nosso ministro
da Fazenda é um homem racional. Por isso, pensa em compensar
a correção monetária da tabela
do Imposto de Renda com a imposição de mais uma alíquota,
superior à atual de 27,5%, conforme noticiado pela imprensa.
As centrais sindicais pressionam pela correção da tabela, que
aliviaria o encurtamento da renda na mão dos assalariados na
sua base de representação. Trata-se de uma reivindicação justa,
que o presidente da República
prometeu atender. Acontece que
essa boa vontade não cabe nas
contas das projeções da Receita.
O Imposto de Renda tinha dez
alíquotas quando fizemos campanha para virar alíquota única.
Baixou para duas, um triunfo da
simplicidade que agora está
ameaçada pela fome da Receita.
Entretanto, para deter o avanço
da carga, seria fundamental enfrentar o inevitável corte no campo da despesa pública, que nunca
pára de crescer nenhum ano sequer. Cortar gastos correntes é politicamente incorreto. E enfrentar
a questão da despesa financeira é
considerado tabu, vedada qualquer declaração a respeito, mesmo sendo de mera suspeita sobre
o avanço do perigo. Para entender esses bloqueios, ajuda bastante a dissonância cognitiva, valioso alívio para os males de um enfrentamento direto com espinhosas questões da macroeconomia.
A dissonância nos ajudará a
lembrar que entre tributar mais
ou deixar que o superávit primário resvale para um resultado inferior a 4,25% do PIB não há opção senão enveredar pela escalada tributária, sob pena de os mercados que nos financiam se decepcionarem com a gestão oficial.
É bem verdade que mais impostos
derrubarão o PIB e destruirão
-mais à frente- o frágil equilíbrio do superávit primário. Mas
isso é depois. No antes, com um
pouco dissonância, dá para empurrar mais carga aos contribuintes.
O mesmo esquema serve para
justificar os juros que nos engolem. Pagamos hoje juros de mau
pagador, alimentando os medos
dos mercados sempre assustados,
porque o bom pagador é capaz de
qualquer coisa para provar o que
é, mesmo quando isso ameaça levá-lo à desonra do seu compromisso no futuro. Isso é dissonância cognitiva, da melhor espécie.
Dissonantes somos todos nós,
aqui ou ali. O problema é sério
quando a dissonância periga nos
arruinar, sob o peso dos mais
bondosos argumentos. A crítica
precisamos fazê-la, porque o momento é, de novo, muito grave.
Porém, num tom carioca, sempre
lembrando o que disse o poeta sobre dissonâncias: "Se você disser
que eu desafino, amor, saiba que
isso em mim provoca imensa
dor... (trecho da música "Desafinado", de Antonio Carlos Jobim).
Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em
economia pela Universidade de Chicago
(EUA), é vice-presidente do Instituto
Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de
crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada
15 dias, nesta coluna.
E-mail -
rabellodecastro@uol.com.br
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