|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LUÍS NASSIF
Isso não é comigo
Uma das características mais
marcantes do modelo cultural
brasileiro é a postura generalizada do "isso não é comigo".
Em geral, o brasileiro é definido como alguém criativo, imaginoso, mas incapaz de levar
empreendimentos adiante. Ao
contrário, vive permanentemente atrás de álibis que permitam situar o diabo nos outros ou aguardar algum gesto
providencial que resolva o problema.
Uma das causas dessa postura -latino-americana, mais
que brasileira- foi o formalismo político e jurídico que sempre marcou a formação do continente, e a submissão dos cidadãos às intervenções do Estado. Por mais esdrúxula que
fosse a medida, era aceita porque, por trás dela, escondia-se
a lógica de algum poderoso. E
esse emaranhado, ilógico justamente para permitir o exercício
da medida arbitrária, acabou
consagrando nacionalmente a
não-assunção de responsabilidades. "Isso não é comigo" tornou-se mania nacional.
Essa postura foi exemplarmente retratada em duas fábulas clássicas. Uma, o conto de
Manuel Scorza sobre um povoado latino onde certa vez o
juiz, autoridade máxima local,
deixa cair uma moeda na frente de um bar. A moeda permanece no mesmo lugar por décadas, porque ninguém ousaria
questionar o ato da autoridade. A outra, o alerta do político
nordestino, provavelmente Vitorino Freire, de que "se encontrar um jabuti em cima de uma
árvore, antes de tirá-lo pergunte quem o colocou ali". Ou a
clássica regra política brasileira: "Manda quem pode, obedece quem tem juízo".
Não interessa a solução, mas
o problema; não a individualização da responsabilidade,
mas sua diluição; não a definição da responsabilidade, mas
do poder.
Longe de ser apenas manifestações folclóricas de um passado arqueológico, esses contra-valores acabam compondo
uma verdadeira cultura da
alienação, infiltrando-se por
todos os poros da vida nacional, da Presidência da República aos sem-terra, das empresas aos poderes públicos, da
universidade à vida em condomínio, dos sindicatos às cooperativas.
Alguns exemplos da nossa
crônica recente:
1) A revista "Época" levanta
casos de oportunistas que rumam a Estados distantes, comprando vagas à Câmara dos
Deputados e ao Senado. Consulta o presidente do Tribunal
Regional Eleitoral de um desses
Estados-dormitório que admite
a burla. Mas diz que nada pode
fazer porque nenhum partido
toma a iniciativa de pedir o
embargo do candidato.
2) O presidente da República
e o do Banco Central reconhecem que o diferencial entre as
taxas de juros básicas e as que
chegam ao consumidor são extravagantes. Nenhum banco
individualmente vai reduzir
suas taxas, com receio de que o
concorrente se aproprie dos
reais que restarem na conta do
correntista. Configura-se claramente uma crise de inadimplência sistêmica exigindo uma
coordenação central da autoridade competente. Mas o presidente da República e o do Banco Central dizem: isso não é
comigo, é problema de mercado.
3) O presidente da Associação Nacional dos Docentes dos
Estabelecimentos Públicos de
Ensino Superior (Andes) debita à ação nefasta do governo
federal os laboratórios abandonados, a falta de equipamentos ou equipamentos em
deterioração nas universidades. Todos esses equipamentos
estão sob guarda das próprias
universidades, sendo cuidados
por professores e funcionários
indicados por eles próprios, e
bancados pelos contribuintes.
4) A seca do Nordeste vira
drama nacional. Durante semanas, um festival nacional de
matérias pungentes retratando
a seca. Anuncia-se a solução.
Na hora de acompanhar se as
soluções estão sendo implementadas, divulgando as
bem-sucedidas e denunciando
as que falham, o tema deixa de
interessar.
Daí porque a descoberta dos
valores da gerência e, especialmente, os programas de qualidade total têm uma relevância
que vai além da mera organização dos fatores de produção.
Trata-se de uma revolução cultural sem paralelo na vida nacional.
Primeiro, por oferecer instrumentos de definição do problema e de organização das ações.
Mas, principalmente, por trazer um dado novo à cultura
das empresas, do Estado e da
sociedade: a solução, na maior
parte das vezes, está ao alcance
de cada um.
Rompe-se com a inércia, e
com a cultura da irresponsabilidade. A busca de soluções
passa a ser responsabilidade
geral. O fim torna-se mais importante que o processo, o resultado mais relevante que os
meios. Cria-se uma nova maneira de pensar, onde o objetivo final é a busca da solução
para o problema proposto, não
a mera identificação do problema. E essa postura já é nítida
em todos os setores da vida nacional.
Na vida acadêmica, setores
que lograram romper com a
choramingas, criaram centros
de excelência. No meio empresarial, empresas que partiram
para a busca de soluções para
seus problemas se impuseram
sobre as que ficam eternamente aguardando a intervenção
do céu. No serviço público, departamentos que fixaram suas
metas e definiram seus programas de qualidade obtiveram
resultados concretos.
É uma nova forma de pensar,
em linha com as transformações que o país está passando,
onde o centralismo é substituído pelo federalismo, as formulações macroeconômicas pelas
intervenções municipais, surgem novos centros dinâmicos
na economia, e ocorre uma renovação empresarial sem paralelo. Em todos os quadrantes
-das administrações petistas à
representação empresarial-
os formuladores do genérico estão sendo substituídos rapidamente pelos construtores de soluções.
E-mail: lnassif@uol.com.br
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|