São Paulo, domingo, 26 de julho de 1998

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LUÍS NASSIF
Isso não é comigo

Uma das características mais marcantes do modelo cultural brasileiro é a postura generalizada do "isso não é comigo". Em geral, o brasileiro é definido como alguém criativo, imaginoso, mas incapaz de levar empreendimentos adiante. Ao contrário, vive permanentemente atrás de álibis que permitam situar o diabo nos outros ou aguardar algum gesto providencial que resolva o problema.
Uma das causas dessa postura -latino-americana, mais que brasileira- foi o formalismo político e jurídico que sempre marcou a formação do continente, e a submissão dos cidadãos às intervenções do Estado. Por mais esdrúxula que fosse a medida, era aceita porque, por trás dela, escondia-se a lógica de algum poderoso. E esse emaranhado, ilógico justamente para permitir o exercício da medida arbitrária, acabou consagrando nacionalmente a não-assunção de responsabilidades. "Isso não é comigo" tornou-se mania nacional.
Essa postura foi exemplarmente retratada em duas fábulas clássicas. Uma, o conto de Manuel Scorza sobre um povoado latino onde certa vez o juiz, autoridade máxima local, deixa cair uma moeda na frente de um bar. A moeda permanece no mesmo lugar por décadas, porque ninguém ousaria questionar o ato da autoridade. A outra, o alerta do político nordestino, provavelmente Vitorino Freire, de que "se encontrar um jabuti em cima de uma árvore, antes de tirá-lo pergunte quem o colocou ali". Ou a clássica regra política brasileira: "Manda quem pode, obedece quem tem juízo".
Não interessa a solução, mas o problema; não a individualização da responsabilidade, mas sua diluição; não a definição da responsabilidade, mas do poder.
Longe de ser apenas manifestações folclóricas de um passado arqueológico, esses contra-valores acabam compondo uma verdadeira cultura da alienação, infiltrando-se por todos os poros da vida nacional, da Presidência da República aos sem-terra, das empresas aos poderes públicos, da universidade à vida em condomínio, dos sindicatos às cooperativas.
Alguns exemplos da nossa crônica recente:
1) A revista "Época" levanta casos de oportunistas que rumam a Estados distantes, comprando vagas à Câmara dos Deputados e ao Senado. Consulta o presidente do Tribunal Regional Eleitoral de um desses Estados-dormitório que admite a burla. Mas diz que nada pode fazer porque nenhum partido toma a iniciativa de pedir o embargo do candidato.
2) O presidente da República e o do Banco Central reconhecem que o diferencial entre as taxas de juros básicas e as que chegam ao consumidor são extravagantes. Nenhum banco individualmente vai reduzir suas taxas, com receio de que o concorrente se aproprie dos reais que restarem na conta do correntista. Configura-se claramente uma crise de inadimplência sistêmica exigindo uma coordenação central da autoridade competente. Mas o presidente da República e o do Banco Central dizem: isso não é comigo, é problema de mercado.
3) O presidente da Associação Nacional dos Docentes dos Estabelecimentos Públicos de Ensino Superior (Andes) debita à ação nefasta do governo federal os laboratórios abandonados, a falta de equipamentos ou equipamentos em deterioração nas universidades. Todos esses equipamentos estão sob guarda das próprias universidades, sendo cuidados por professores e funcionários indicados por eles próprios, e bancados pelos contribuintes.
4) A seca do Nordeste vira drama nacional. Durante semanas, um festival nacional de matérias pungentes retratando a seca. Anuncia-se a solução. Na hora de acompanhar se as soluções estão sendo implementadas, divulgando as bem-sucedidas e denunciando as que falham, o tema deixa de interessar.
Daí porque a descoberta dos valores da gerência e, especialmente, os programas de qualidade total têm uma relevância que vai além da mera organização dos fatores de produção. Trata-se de uma revolução cultural sem paralelo na vida nacional.
Primeiro, por oferecer instrumentos de definição do problema e de organização das ações. Mas, principalmente, por trazer um dado novo à cultura das empresas, do Estado e da sociedade: a solução, na maior parte das vezes, está ao alcance de cada um.
Rompe-se com a inércia, e com a cultura da irresponsabilidade. A busca de soluções passa a ser responsabilidade geral. O fim torna-se mais importante que o processo, o resultado mais relevante que os meios. Cria-se uma nova maneira de pensar, onde o objetivo final é a busca da solução para o problema proposto, não a mera identificação do problema. E essa postura já é nítida em todos os setores da vida nacional.
Na vida acadêmica, setores que lograram romper com a choramingas, criaram centros de excelência. No meio empresarial, empresas que partiram para a busca de soluções para seus problemas se impuseram sobre as que ficam eternamente aguardando a intervenção do céu. No serviço público, departamentos que fixaram suas metas e definiram seus programas de qualidade obtiveram resultados concretos.
É uma nova forma de pensar, em linha com as transformações que o país está passando, onde o centralismo é substituído pelo federalismo, as formulações macroeconômicas pelas intervenções municipais, surgem novos centros dinâmicos na economia, e ocorre uma renovação empresarial sem paralelo. Em todos os quadrantes -das administrações petistas à representação empresarial- os formuladores do genérico estão sendo substituídos rapidamente pelos construtores de soluções.

E-mail: lnassif@uol.com.br


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