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São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2003

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Abertura financeira e taxa de juros

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

No "Treatise on Money", Keynes afirma que, mesmo em um ambiente regulado pelas normas do padrão-ouro -com livre movimentação de capitais e taxas fixas de câmbio- "a taxa de juros de um país é fixada por fatores externos e é improvável que o investimento doméstico alcance o nível de equilíbrio" (ou seja, um valor compatível com o melhor aproveitamento dos fatores de produção disponíveis).
Nos trabalhos preparados para a Conferência de Bretton Woods, Keynes foi além e chamou a atenção para as diferenças de "poderio financeiro" entre as economias nacionais e sua importância na determinação de graus de liberdade na execução das políticas monetárias. Ele apontava, na verdade, para a existência de uma hierarquia entre os bancos centrais e as respectivas moedas nacionais.
As alterações ocorridas na estrutura da riqueza capitalista ao longo das últimas três décadas tornaram ainda mais complexa a gestão monetária nos países de moeda "fraca". Vou enumerá-las, sem a pretensão de ser exaustivo: 1) o maior peso da riqueza financeira na riqueza total; 2) o poder crescente dos administradores da massa de ativos mobiliários (fundos mútuos, fundos de pensão e seguros) na definição das formas de utilização da "poupança" e do crédito; 3) a generalização da abertura das contas de capital, dos regimes de taxas flutuantes e da desregulamentação financeira; 4) as agências de classificação de risco assumem o papel de tribunais, com pretensões de julgar a qualidade das políticas econômicas nacionais.
A experiência recente parece mostrar que os constrangimentos sobre as políticas monetária e fiscal têm sido mais inflexíveis e duradouros no caso dos países que abriram suas contas de capital, surfaram nos ciclos de crédito externo e se tornaram amplamente devedores em moeda estrangeira.
Ao contrário do que se julgava no início da década de 90, a predominância do endividamento privado em moeda estrangeira não reduziu, mas, de fato, acentuou a vulnerabilidade externa, tornando obsoleta a primeira geração de modelos que pretendiam explicar as crises cambiais mediante a relação entre déficits fiscais, excesso de absorção doméstica e déficits em conta corrente.
Daí duas consequências: 1) não é recomendável a adoção de regimes cambiais "extremos" (taxa fixa ou livre flutuação); 2) os bons "fundamentos" fiscais (sobretudo a dinâmica da dívida pública interna) podem reduzir substancialmente os prêmios de risco, mas não eliminam -nos países periféricos mais dependentes de financiamento externo- o prêmio de liquidez na formação das taxas de juros domésticas.
O controle da liquidez em moeda forte é, portanto, crucial para a sempre precária combinação entre estabilidade e crescimento nas economias de moeda não-conversível. Queiram ou não os ideólogos do livre-cambismo, essa circunstância representa uma limitação importante nos processos de abertura da conta de capitais. O montante relativamente elevado de reservas que os bancos centrais são obrigados a manter para assegurar a estabilidade da taxa de câmbio e condições adequadas de crédito interno é um indicador claro da impossibilidade da flutuação cambial pura.
As tendências à apreciação ou depreciação do real dependem, no curto prazo, em condições de abertura financeira, do fluxo e refluxo de capitais internacionais e do maior ou menor descasamento de ativos e passivos em dólar dos bancos, empresas e rentistas sediados no Brasil. Por sua vez, a relação dívida/PIB -adotada como meta com o Fundo Monetário Internacional- varia com as taxas de juros e de câmbio que determinam, em primeira instância, a dinâmica da dívida pública. Trata-se, portanto, de uma relação volátil, cuja tentativa de redução, convertida em meta com o FMI, torna draconiana a execução da política fiscal. Sua redução, com juros altos, crescimento baixo e elevada necessidade de financiamento externo exige sempre superávits primários fiscais elevados e o encolhimento relativo, quando não absoluto, dos gastos sociais.
Alguns países periféricos, como a China e a Índia, preferiram manter controles seletivos de câmbio e de capitais e acumular saldos comerciais (e reservas) elevados em moeda-reserva com o propósito de não perder o controle sobre a taxa de juros doméstica.
Os estudiosos que se dispõem a avaliar os efeitos dos controles de capitais sobre o crescimento econômico nas economias emergentes não têm sido capazes de fazer um juízo definitivo. Os resultados econométricos são, na verdade, ambíguos. As condenações peremptórias dessas práticas -apontadas como geradoras de ineficiência alocativa- partem mais frequentemente de doutrinadores e ideólogos do livre mercado, sem uma base empírica sólida.


Luiz Gonzaga Belluzzo, 60, é professor titular de Economia da Unicamp (Universidade de Campinas). Foi chefe da Secretaria Especial de Assuntos Econômicos do Ministério da Fazenda (governo Sarney) e secretário de Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo (governo Quércia).


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