São Paulo, domingo, 27 de janeiro de 2002

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TENDÊNCIAS INTERNACIONAIS

Pierre Bourdieu desmontou a cultura da globalização

GILSON SCHWARTZ

ARTICULISTA DA FOLHA

Qual a semelhança entre o dinheiro e os corpos?
Perguntas desse tipo, em que a fronteira entre a economia e o "resto" da realidade fica imprecisa e fluida, marcaram a obra de Pierre Bourdieu, sociólogo francês morto na semana passada que criticava com vigor a globalização e o neoliberalismo.
Perguntas como essa (moeda e corpo) frequentaram o pensamento de muitos outros franceses importantes, de Georges Bataille a Michel Foucault.
A pergunta não é apenas francesa. Outros pensadores, como George Simmel e John M. Keynes, viram o que estava "por trás" do dinheiro. Keynes via no respeito ao padrão-ouro (avô de modelos como o que acaba de ruir na Argentina) uma patologia cultural e psicológica.
Para Bourdieu (e para o inglês Keynes), a semelhança entre o dinheiro e os corpos está na violência implícita dos códigos que são usados para discipliná-los (dinheiro e pessoas).
Bourdieu tratou da "violência simbólica", economistas como Michel Aglietta tratam da "violência da moeda". Note-se a violência na crise de modelos ultraliberais, como o do peso-dólar.
A mais cruel camuflagem para a violência dos códigos é o hábito. Não é à toa que o pensamento econômico mais conservador é um amante do "respeito às regras", ou seja, a contratos que regem direitos de propriedade.
A França foi também o berço de um Proudhon, para quem a propriedade é um ato de violência (roubo). Na semana passada, o "The Wall Street Journal" usou o termo "roubo" para classificar a ruptura argentina com as regras do padrão peso-dólar.
No século passado, na City londrina, o refrão era o mesmo -pregavam o respeito às "rules of the game" (regras do jogo).
Mas quem é o juiz?
Em quais campos e momentos é possível romper com o hábito, mudar (em certas utopias, fazer a revolução pessoal ou social)?
Os meios de controle social definem a emancipação possível tanto para o indivíduo quanto para os grupos e classes sociais.
Mas eles não estão neste ou naquele órgão, no Banco Central ou no Ministério da Educação. Difusos em muitas práticas, esses meios de controle formam sistemas de gestão da informação e do conhecimento (como as escolas), mídias (como os jornais, a televisão e a internet), práticas culturais e ideologias.
Há manipulação da violência visível e promoção de formas de participação e inclusão social que só reforçam a disciplina e a opressão (a ordem vigente).
No entanto o pensamento de Bourdieu, anticapitalista e revolucionário (do casamento à política econômica), também funciona muito bem para o "outro lado". No capitalismo sobrevive, hoje, quem criar novos hábitos, novas práticas de organização empresarial, novas tecnologias e conhecimentos. Na empresa é preciso escapar, para o bem do sistema, de sua própria violência rotineira e opressiva.
A empresa competitiva aprende o tempo todo, tem funcionários empreendedores, inovadores, líderes capazes de questionar a direção e, assim, gerar lucros em mercados instáveis.
É preciso romper regras, inclusive na gestão dos corpos (um dia para a roupa casual no banco, maior presença de mulheres e negros nas equipes ou inovações nos escritórios e oficinas em favor da criatividade).
A herança de 68, ora como fonte de mais energia contra o establishment, ora como guia para a mudança social sob um "mínimo" de ordem, aparece em toda a obra de Bourdieu. Suas idéias sobrevivem e funcionam à esquerda e à direita, traço que talvez garanta seu lugar como pensador universal.



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