São Paulo, domingo, 27 de janeiro de 2002

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AÇÃO AFIRMATIVA

Ciepeghepe busca inserir no mercado empreendedores de origem africana, indígena e deficientes físicos

Entidade une "empresa étnica" a grandes corporações

LÁSZLÓ VARGA
DA REPORTAGEM LOCAL

Viver em um país como o Brasil, onde o racismo é velado, não é nada fácil para um negro ou índio. Montar uma empresa, então, gera muitas vezes desconfianças e barreiras invisíveis, que chegam a impedir a realização de negócios. O empresário Cesar Nascimento, 48, proprietário da consultoria On Controller, sofreu diversas vezes essa experiência. Chegou a ter um encontro desmarcado com o diretor financeiro de uma grande companhia de alimentos, quando esse percebeu que ele era negro.
Foi para enfrentar o racismo e promover o intercâmbio entre grandes empresas e empreendedores de origens africana, indígena ou deficientes físicos que Nascimento fundou o Centro de Integração Empresarial para Etnias e Grupos Historicamente Excluídos do Progresso Econômico (Ciepeghepe). A sigla não favorece muito a divulgação da causa, mas Nascimento tem conseguido resultados. Obteve o suporte técnico da entidade norte-americana NMSDC e vem conquistando a simpatia de filiais de multinacionais norte-americanas.
Na entrevista abaixo, Nascimento, que é membro do conselho da Ciepeghepe, explica como pretende conquistar também as grandes empresas brasileiras e ampliar o número de participantes da entidade, que hoje é de apenas cem. Nos EUA, só a NMSDC possui 15 mil filiados.

Folha - Quais são as metas do Ciepeghepe?
Cesar Nascimento -
Facilitar os negócios de grandes companhias com empresas de pessoas tradicionalmente excluídas, como afro-brasileiros, índios e deficientes físicos. A idéia nasceu de uma série de conversas que tive com empresários afro-brasileiros em meados dos anos 90 sobre as dificuldades que enfrentávamos em fechar contratos com algumas empresas.

Folha - Que tipo de dificuldades?
Nascimento -
Geralmente são barreiras invisíveis. Você sabe que está sendo discriminado, mas não tem como provar. Uma vez, por exemplo, me apresentei em uma grande empresa de óleos comestíveis para oferecer o serviço de consultoria contábil e financeira da minha empresa. Marquei data e horário. Quando cheguei, me deixaram esperando na sala de visitas. Percebi que surgiu um burburinho no escritório. Em determinado momento, o chefe do departamento financeiro passou por mim duas vezes, a fim de fazer uma checagem visual discreta. Logo depois fui informado de que o encontro com o executivo não aconteceria e acabei conversando com um subalterno, na sala de visitas mesmo.

Folha - Como é possível eliminar essa barreira invisível?
Nascimento -
Estimulando o contato entre as empresas. O Ciepeghepe foi criado em 1999, mas foi em 2001 que estabelecemos nossas diretrizes. Adotamos um modelo inspirado na entidade norte-americana National Minority Supplier Development Council [NMSDC". Esse órgão intermedeia negócios de minorias étnicas no Estados Unidos. Naquele país, o governo determinou que grandes corporações devem manter negócios com empresários de minorias étnicas. Não existe um percentual estabelecido, mas há essa determinação. As companhias que adotam o esquema ganham um certificado, e muitos consumidores não compram mais produtos de empresas que não participam dessa política.

Folha - Acontece que no Brasil não existe essa exigência...
Nascimento -
Justamente. E também os afro-brasileiros não são minorias. Pelo contrário. Ao lado dos pardos, representam cerca de 47% da população. Mas existe racismo, e, para superar as barreiras que os empresários afro-brasileiros e indígenas enfrentam, decidimos aproveitar o próprio exemplo dos norte-americanos. Atuamos em multinacionais dos Estados Unidos que tenham filiais no Brasil e que estejam dispostas a contratar empresas de pessoas tradicionalmente excluídas. A vantagem que as multinacionais ganham é que isso contribui para que recebam o certificado do governo norte-americano.
Um dos primeiros casos que já conseguimos intermediar é o da agência de viagens Allmar Turismo, que está prestando serviços de viagens para executivos para a Xerox. Outras multinacionais, como Du Pont, Honda, Lucent, Kodak, HP e Delta Air Lines, estão envolvidas no projeto. Aliás, são elas mesmas que financiam o Ciepeghepe.

Folha - Como assim?
Nascimento -
Elas pagam os custos de manutenção da entidade, além dos fóruns anuais que promovemos. Elas fazem isso porque têm interesse em descobrir empresas de qualidade de empresários afro-brasileiros, índios ou deficientes físicos. A NMSDC, nos Estados Unidos, trabalha da mesma maneira. A diferença é que essa entidade norte-americana existe há 30 anos, e já existem 2,8 milhões de empresas de minorias étnicas nos Estados Unidos, que faturaram cerca de US$ 335 bilhões em 1997. No Brasil, temos atualmente só cem empresas ligadas ao Ciepeghepe. A meta é chegarmos a 300 até o final de 2002.

Folha - Como o Ciepeghepe quer conquistar as grandes companhias brasileiras?
Nascimento -
Hoje já temos o apoio de multinacionais. Acreditamos que a médio e longo prazos o mercado vai pressionar as empresas brasileiras a trabalhar com companhias de empresários tradicionalmente excluídos. As primeiras pressões devem vir do exterior, de importadores engajados na política norte-americana.

Folha - O sr. é a favor da criação de um certificado brasileiro?
Nascimento -
Temos trabalhado para isso, mantendo contatos com parlamentares. Existem também esforços para que o governo federal e os estaduais garantam nas licitações públicas a participação de companhias de empresários tradicionalmente excluídos. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), tem se mostrado muito favorável à idéia. Não estamos falando de paternalismo, mas de uma maneira de garantir que os grupos tradicionalmente excluídos tenham chances de participar de serviços públicos. Caso haja empate entre os orçamentos apresentados por uma empresa que se inclui no perfil do Ciepeghepe e de outra, aí, sim, o critério de beneficiar o membro de um grupo tradicionalmente excluído seria levado em conta.

Folha - O sr. defende cotas para afro-brasileiros ou índios nas universidades?
Nascimento -
Não me agrada essa idéia. Isso é paternalismo, mas talvez sirva como transição para que haja pleno acesso à universidade no Brasil. E assim surjam mais empresários afro-brasileiros e índios.

Folha - O sr. veio de uma família pobre?
Nascimento -
Sim, bastante pobre, do bairro da Casa Verde [zona norte de São Paulo". Meu pai era motorista de ônibus, e minha mãe tinha uma banca de jornal. Desde pequeno ajudei na banca, enquanto estudava na escola pública. Para entrar na faculdade, economizei, tive de atrasar algumas mensalidades, mas consegui me formar em ciências contábeis na PUC-SP e depois na FGV-SP. Trabalhei na consultoria Artur Andersen, na Cosipa, na Promon Engenharia, na agência J. W. Thompson e na Microsoft. Depois, montei meu negócio.



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