São Paulo, domingo, 27 de junho de 2004

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FHC credita ao Real eleição e ápice de sua carreira política

Ex-presidente temeu fracasso, mas diz que controle da inflação popularizou seu nome

FERNANDO RODRIGUES
DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Ministro da Fazenda durante a elaboração do Plano Real, em 1993, Fernando Henrique Cardoso, 73, credita o ápice de sua carreira política à moeda: "Quando a população passou a sentir que tinha ganho, que foi a partir de julho [de 1994], os dados de pesquisas começaram a mudar. Não há dúvida: sem o Real, não seria possível [ganhar a eleição]. Nem popularizar o meu nome".
Numa entrevista retrospectiva, o ex-presidente da República (1995-2002) disse que o Plano Real "trouxe pedagogia democrática" ao país.
 

Folha - O que representou o Real para o Brasil e para a sua gestão?
Fernando Henrique Cardoso -
Para o Brasil, representou a possibilidade de uma mudança de atitude geral, não só em relação à moeda. Temos mais previsibilidade. As pessoas passaram a perceber o quanto vale o dinheiro. Na inflação, não havia nem previsibilidade nem capacidade de racionalmente planejar o orçamento.
Para mim, foi uma coisa pessoalmente muito significativa, gratificante, porque várias tentativas anteriores não tinham sido bem-sucedidas. Nós até aprendemos com elas, sobretudo com o Plano Cruzado. No Plano Real teve uma coisa que eu acho que foi uma inovação: foi tudo feito abertamente, não houve surpresa, não houve pacote, a população foi informada do que iria acontecer. Trouxe pedagogia democrática.

Folha - Quando foi que o sr. ouviu falar pela primeira vez no que viria a ser o Plano Real, na URV?
FHC -
A primeira vez que eu ouvi foi em agosto de 1993, pelo Edmar Bacha, que falou em "oteinização" da economia [uma referência à hoje extinta OTN (Obrigação do Tesouro Nacional), um indexador da economia]. Depois, com ele, o Winston Fritsch.

Folha - O que o sr. achou?
FHC -
Eu achei que era bom. Depois eu tive uma conversa longa com o André Lara Resende. O André tinha uma porção de idéias na cabeça. Aí eu pedi ao André que conversasse com o Pedro Malan. Depois, por acidente, entrou também o Pérsio Arida -por acidente porque caiu o presidente do BNDES. O Gustavo Franco também estava lá desde o início. Mas a idéia mesmo de criar a URV acabou sendo do Pérsio e do André.

Folha - Qual foi a maior dificuldade nessa fase de pré-implantação?
FHC -
Primeiro, o FMI não apoiou. Não confiavam em nossas contas. A negociação da dívida foi difícil. Depois, a aposta contra -de setores políticos, empresariais- era muito grande.

Folha - Havia resistência também dentro do governo...
FHC -
Também. O PFL só tomou uma decisão mais favorável depois de janeiro de 1994. Eles não acreditavam muito.

Folha - O sr. diria que houve uma semana, um período que foi mais crítico nessa fase pré-implantação?
FHC -
Foi em fevereiro de 1994, com uma grande discussão no governo. Tinha que haver a aprovação pelo presidente Itamar Franco, que aliás sempre esteve favorável. Dentro do governo alguns ministros estavam contra porque achavam que ia haver um grande prejuízo para o salário dos trabalhadores e do funcionalismo.

Folha - Como se comportou a ala econômica do PSDB?
FHC -
O [José] Serra ajudou quando nós estávamos na parte de implantação fiscal. O PSDB apoiou mesmo. Todos apoiaram. O [Mário] Covas era líder no Senado, e o Serra, na Câmara, os dois apoiaram fortemente.

Folha - E o PT?
FHC -
Eu chamei o Lula e o José Dirceu para conversar na minha casa. Eles vieram, no final de 1993, em Brasília. Eu expliquei, porque sempre havia aquela dúvida se quem iria pagar o preço eram os trabalhadores. Não eram, o modelo era diferente. Não adiantou. O PT votou contra tudo.

Folha - Ainda sobre os principais formuladores do Plano Real, em ordem de criação e participação, o sr. começaria por quem?
FHC -
O Edmar Bacha e o Fritsch. Mas eu poria logo depois a imaginação criadora do Pérsio e do André e a enorme capacidade de resolver os problemas do Gustavo. O Malan, o tempo todo. Por fim, o Clóvis Carvalho também, porque ele fazia o pessoal trabalhar. Agora, de quem era a imaginação e a solução dos problemas, aí são: Bacha, André, Pérsio e Gustavo.

Folha - Como foi a escolha do nome do plano?
FHC -
A mídia falava Plano FHC. Nós nunca demos um nome. Depois, inventaram que iria ter um "FHC 2". O Real foi quando veio a moeda. Eu achei melhor que fosse esse nome. E se desse errado?

Folha - Em que medida o sr. acha que o Real o ajudou a se eleger?
FHC -
Muito. Quando a população passou a sentir que tinha ganho, que foi a partir de julho, os dados de pesquisas começaram a mudar. Não há dúvida: sem o Real, não seria possível. Nem popularizar o meu nome.

Folha - Quem era favorável a antecipar o lançamento da moeda?
FHC -
Eu. Eu estava fora do governo. Por quê? Porque o prazo foi dado para as pessoas repactuarem. Acontece que houve uma aceitação muito rápida. Se não houvesse logo a mudança para a moeda, as pessoas deixariam de acreditar que a moeda existiria.

Folha - E a desvalorização do real? Poderia ter sido mais cedo?
FHC -
Se você visse as discussões que nós tivemos no começo do governo, você veria que eu queria avançar a desvalorização logo. Quando ficou US$ 0,82 para R$ 1,00, o ministro era o Ciro Gomes e não sei se foi decisão dele, se foi de alguém ou se foi do mercado. Eu achava que a desvalorização tinha que ocorrer logo. Por mim, o câmbio teria sido corrigido. Eu ia pedir ao Itamar que fizesse a desvalorização antes de eu assumir.

Folha - E daí?
FHC -
Daí veio a crise do México, que não permitiu, em dezembro. Depois, nós tentamos no começo de março. Não deu muito certo...

Folha - Não houve um momento em que o sr. acha que poderia ter desvalorizado?
FHC -
Mais adiante, podia ser talvez logo antes da crise da Ásia, que foi em 1997, ou no começo de 1998, antes da crise da Rússia. Mas veio a crise; aí, não dava mais.

Folha - Houve o componente político? Sem o Plano Real, com inflação, o governo se enfraqueceria? FHC - Não. O que nos orientava ali era a questão econômica. Na verdade, quando você está metido numa empreitada desse tipo, o resto fica menor. O medo era econômico. Falaram em populismo cambial. Mentira. Ninguém estava preocupado com a eleição. Eleição se ganha de outra maneira. Eu ganhei em 1998 contra tudo. Não estava boa a situação.

Folha - Como foi o pedido de demissão do ministro Malan?
FHC -
Em 1999, quando estourou tudo lá. Depois da crise, da política bancária. Uma coisa muito difícil, ele achava que tinha de sair para eu criar uma situação nova.

Folha - Como é que o sr. definiu que não deveria demiti-lo?
FHC -
Eu estava em contato com o mundo todo, pelo telefone. Nunca perdi o contato. O Malan tinha uma credibilidade enorme, que não tinha sido abalada.

Folha - Houve algum momento em que o sr. achou que o Plano Real tinha acabado?
FHC -
Vários. Dezembro de 1997, quando tive dificuldade. Quando houve a crise da Ásia, aquelas 51 medidas, que foram muitas mal "ajambradas". Ali havia uma dificuldade enorme de saber como a gente ia vencer aquela tremenda circulação contrária. Depois, em 1999, houve o estouro da boiada.

Folha - Como foi a decisão de chamar Armínio Fraga para o BC?
FHC -
O Armínio foi considerado no início. Quando o Pérsio veio para o Banco Central, ele já queria que eu colocasse o Armínio. O Armínio sempre foi uma pessoa que ficou no banco de reserva, pois também não podia vir. Quando houve a coisa, foi o primeiro a ser chamado.

Folha - Qual foi o papel dele?
FHC -
Muito importante. Ele tem uma imaginação enorme, tem credibilidade, é uma pessoa fácil de trato. Ajudou a acalmar as coisas. O Armínio, digamos, é mais o meu temperamento: não aumenta os problemas, vai resolvendo, como se fosse uma coisa simples.

Folha - Que avaliação o sr. faz da condução da política econômica atual?
FHC -
Eles estão fazendo o que tem que ser feito. O câmbio eles já pegaram resolvido, flutuando. E a Lei de Responsabilidade Fiscal já existe.

Folha - Esse modelo iniciado pelo sr. é lento e gradual. O ministro Palocci fala em até dez anos de austeridade fiscal. O país agüenta?
FHC -
Se tiver investimento, agüenta. Por que eu agüentei e fui reeleito?

Folha - Quem tem discursos corretos no governo?
FHC -
O ministro da Fazenda e o presidente falam o que deve ser falado. Mas não adianta só o discurso. O problema está no conjunto do governo. E há o problema da dívida e da inexistência do mercado de capitais.


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