UOL


São Paulo, domingo, 27 de julho de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS

Cultura e desenvolvimento

ALOIZIO MERCADANTE

O ministro Gilberto Gil referiu-se à cultura como sendo "a argamassa de nosso novo projeto nacional". Mais do que a beleza tão particular das palavras desse excepcional brasileiro, a frase contém uma diretriz para o projeto cultural de nosso país. Não podemos mais tratar a cultura como uma área marginalizada do governo, como tantas vezes se fez na nossa história, ate mesmo recentemente. Para o governo do presidente Lula, a cultura é parte e fundamento do projeto estratégico de desenvolvimento do Brasil.
Uma proposta de política cultural abrange, dessa perspectiva, três planos interconectados: a cultura como formação da identidade nacional e afirmação dos valores pelos quais nos reconhecemos no outro e contribuímos para a construção da história universal; a cultura como meio de inclusão social, instrumento de extensão da cidadania e de desenvolvimento pleno das capacidades humanas, exercendo um papel tão relevante, sobretudo com a juventude, por meio, principalmente, da música ou do teatro; e, finalmente, a cultura como setor produtivo e gerador de empregos e renda.
Sobre este último aspecto, vale recordar que a economia da cultura emprega 510 mil pessoas, o que representa 53% a mais do que a indústria automobilística. Trata-se de um setor que, além de altamente intensivo em mão-de-obra, é não-poluente e tem grandes possibilidades de contribuir para a expansão do mercado interno.
A criação de um programa de incentivo para a construção de cinemas nas cidades de menor porte e nas periferias das grandes cidades é um bom exemplo de como a atividade cultural pode movimentar a economia, gerar empregos diretos e indiretos e, ao mesmo tempo, levar manifestações artísticas a localidades que hoje se vêem privadas do "pleno exercício dos direitos culturais", previsto no artigo 216 da Constituição. É inadmissível que um país que, 30 anos atrás, tinha 3.500 salas de cinema, hoje não possua nem a metade disso.
Muitas outras iniciativas podem ser adotadas para apoiar o desenvolvimento cultural do país nas três dimensões anteriormente citadas. Foi justamente com o propósito de promover uma participação ativa do Congresso nesse esforço que propus a criação de uma frente suprapartidária -a Frente Parlamentar de Apoio à Cultura. Existe uma série de ações que podem, desde já, ser apoiadas por ela no âmbito da indústria cultural.
Tomemos o cinema como foco de atenção. O cinema brasileiro entrou em um ciclo extremamente rico -seja em quantidade de filmes feitos, em qualidade ou em bilheteria. No entanto ainda não conseguiu ocupar o espaço merecido nem no mercado nacional nem no internacional. Nos últimos dois anos, foram produzidos 76 filmes, dos quais apenas 30 tiveram a distribuição garantida. Além disso, a maioria dos filmes exibidos ficou muito pouco tempo em cartaz. O prejuízo é evidente tanto no plano econômico como no da difusão cultural.
O cinema nacional ocupa hoje apenas 8% do mercado brasileiro, sendo que, em 1982, ocupava 36%. Hoje, os cinemas têm a obrigação de exibir filmes brasileiros em média por apenas 30 dias ao ano, número que chegou a ser de 140 dias na década de 80. É necessário mudar essa trajetória e alcançar a meta de um terço do mercado nacional para os filmes brasileiros. É importante frisar que os norte-americanos, com uma indústria cinematográfica muito mais importante do que a nossa, têm um sistema rigoroso de controle de mercado, que impede que os filmes estrangeiros representem mais de 3% do total. Nesse sentido, é imprescindível que firmemos posição nos fóruns internacionais para tratar a cultura com excepcionalidade -e não como uma commodity qualquer, sujeita às regras comerciais da OMC (Organização Mundial do Comércio).
Outro aspecto central é a distribuição de filmes nacionais. A decadência do cinema nacional durante o período Collor, com a preponderância da visão neoliberal sobre a cultura, ocorreu exatamente quando, entre outras medidas, se extinguiu a distribuidora nacional, e aí a participação dos filmes brasileiros despencou para 0,05% do total. Assim, se desejamos fortalecer nossa indústria cinematográfica, é imprescindível que discutamos seriamente a criação de uma grande distribuidora brasileira, de preferência em parceria com o setor privado e, se possível, com atuação no âmbito do Mercosul.
Também merece ser reforçado o intercâmbio de filmes com outros países da América Latina, que tem tido uma produção cinematográfica fantástica. No entanto a distribuição desses filmes por aqui costuma ser muito tímida, assim como a dos filmes nacionais em países latino-americanos.
Por fim, é preciso que a televisão brasileira cumpra seu papel no desenvolvimento do cinema nacional. Não é possível que os filmes estrangeiros mantenham a total dominação da programação das emissoras brasileiras havendo tanto bons filmes nacionais para serem mostrados.
O tema dos incentivos à cultura é controverso. Um exemplo positivo foi o sistema de cotas e de isenção fiscal do ICMS para a música brasileira (que devemos lutar para que seja mantido pelos secretários estaduais de Fazenda), que permitiu que sua participação no mercado nacional saltasse de 35% para 85% em menos de 20 anos.
Mas também há exemplos negativos de empresas, em muitos setores culturais, que se aproveitam da atual legislação para transformar atividades de publicidade em projetos culturais pagos com o dinheiro público. Por isso faz-se necessário formular um novo padrão de financiamento, que democratize e diversifique o acesso aos recursos. Outra proposta interessante para combater esses desvios seria a de que a Controladoria Geral da União utilizasse o mecanismo que tem usado para fiscalizar prefeituras e sorteasse projetos para serem acompanhados com todo o rigor necessário.
Em síntese, há um amplo campo para, por meio de uma ação abrangente que envolva cinema, música, produção literária, teatral e de dança e outras formas de expressão cultural, utilizar a "geléia geral brasileira" como um instrumento de transformação socioeconômica e de desenvolvimento. E, se não bastar toda essa argumentação, vale lembrar que cultura gera prazer, satisfação, sensações que andam escassas, mas que, em última análise, são o maior objetivo de uma economia saudável.


Aloizio Mercadante, 49, é economista e professor licenciado da PUC e da Unicamp, senador por São Paulo, secretário de Relações Internacionais do Partido dos Trabalhadores e líder do governo no Senado Federal.

Internet:
www.mercadante.com.br

E-mail -
mercadante@senador.gov.br


Texto Anterior: Opinião econômica: Uma reforma anacrônica?
Próximo Texto: Panorâmica - Barril de pólvora: Venezuela não quer Iraque em reunião da Opep
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.