São Paulo, quarta-feira, 28 de fevereiro de 2001

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MEMÓRIA

Walther Moreira Salles foi, além de banqueiro, embaixador brasileiro nos EUA e negociador da dívida externa do país

Banqueiro foi personagem do século 20

Cesar Itiberê/Folha Imagem
O banquiero Walther Moreira Salles, que morreu ontem


LUÍS NASSIF
DO CONSELHO EDITORIAL

Com a morte do embaixador Walther Moreira Salles desaparece um dos brasileiros mais relevantes do século 20. Levará tempo para que um inventário de sua vida revele toda a grandeza de sua atuação econômica e política, como homem do setor público e privado.
O embaixador nasceu em 1912 em Pouso Alegre, período em que o Brasil era dividido entre o Rio de Janeiro e uma enorme elite latifundiária, que dominava politicamente o interior de norte a sul. O latifúndio pouco abria espaço para os pequenos empreendedores. A auto-suficiência das fazendas impedia o desenvolvimento das cidades e, com elas, o surgimento de uma classe média influente.
No plano político, o país dividia-se entre esses coronéis paulistas e mineiros e a elite comercial e política do Rio de Janeiro, uns voltados para a produção e para valores sólidos, mas irremediavelmente fechados ao exterior, outros vivendo de uma relação subordinada e predatória com interesses comerciais de fora.
O pai, João Moreira Salles, era um pequeno sitiante de Cambuí, sul de Minas, que se casou com uma senhora da alta estirpe de Pouso Alegre. Por falta de condições em Cambuí, cidade quase rural, Walther foi criado em Pouso Alegre com os avós, até os 12 anos.
Nesse ínterim, atrás de melhores oportunidades, o pai se mudou para Guaranésia, depois para Mococa, onde montou uma comissária de café. Acabou mudando para Poços de Caldas depois que dois filhos gêmeos faleceram antes de completar o primeiro ano de vida.

O PAI
Em Poços, João Moreira Salles ampliou os negócios de café e montou um conjunto extremamente diversificado de lojas -de secos e molhados a funerárias. O negócio principal era uma casa comissária de café que atuava no financiamento da produção e que acabou se tornando casa bancária. Em meados dos anos 20, houve uma reforma bancária permitindo às casas bancárias se transformarem em bancos. Alguns anos depois, João Moreira Salles mudou-se para Santos levando três filhos menores e deixando para o primogênito o banco.
Tem início aí a mais fulgurante aventura empresarial do período. A partir dos 12 anos, Walther chegara a Poços de Caldas e se incorporara novamente ao núcleo familiar. Na ocasião, Poços havia se transformado em balneário de fama internacional e para lá se dirigiam, nas temporadas, a alta intelectualidade carioca e os barões rurais paulistas. A partir de 1930, o governo de Antônio Carlos constrói o conjunto arquitetônico compreendendo o balneário, o Palace Hotel e o Cassino, e Poços passa a receber a nova elite política do Brasil -os tenentes que haviam levado Getúlio Vargas ao poder.
É nesse período que Walther começa a tecer sua rede de boas relações, que ia de músicos, como Ary Barroso, a magnatas da imprensa, como Assis Chateaubriand, e à própria família Vargas. Era com ele e seus amigos -entre os quais o inseparável Homero de Souza e Silva -que os jovens filhos de Vargas saíam nos passeios de Poços. Teve um namoro dolorido com a filha predileta de Vargas, Alzira, que não foi adiante por uma razão compreensível. "Ela era a filha predileta do homem mais poderoso do Brasil", disse-me ele, certa vez. "Eu seria sempre o genro." Terminou assim o namoro.
Aos 28 anos, teve a primeira chance de sair do Brasil. Foi para os Estados Unidos a convite do Departamento de Estado, para um estágio no mercado financeiro nova-iorquino. Lá conheceu um enorme grupo de jovens bancários que, anos depois, se tornaria a elite do mercado financeiro internacional.
De lá voltou casado com Helene, filha de um alto executivo da Coty, criador do famoso perfume Channel número 5. E foi nessa viagem que articulou seu primeiro grande negócio. Como a viagem demorava muito, acabou ficando amigo de um representante da Caterpillar, que informou a intenção da empresa de sair do Brasil. Pressentindo o boom rodoviário que vinha pela frente, Salles conseguiu a representação Caterpillar, que foi um de seus primeiros grandes negócios rentáveis, fora do banco.

O BANQUEIRO
Quando percebeu que Poços era pequena demais para ele, Salles tomou uma atitude inusitada para o Brasil, mesmo nos tempos atuais. Fundiu seu banco com o banco Machadense, concorrente de uma cidade vizinha. Saiu daí um banco maior, mais forte. E a presidência-executiva do banco ficou com Pedro di Perna, o sócio, que o liberou para traçar as grandes estratégias do grupo.
Essa seria, daí para a frente, sua característica principal. Em um país carente de capitais, sabia como ele só identificar oportunidades de negócio e juntar investidores em torno delas. A associação era feita em cima de contratos claros mas, especialmente, em cima de confianças recíprocas. O embaixador foi passado para trás em alguns negócios, mas nenhum dos seus sócios teve qualquer reclamação contra ele. Esse estilo de negociar transformou-se no maior trunfo de que dispunha para se tornar o maior empreendedor de seu tempo. Ser sócio de Walther Moreira Salles significava conseguir o caminho da fortuna, sem nenhum risco de ser enganado pelo sócio ou de se meter em negócios ilícitos.
Consolidada a retaguarda, com o banco sob o comando de Pedro di Perna, rumou para o Rio de Janeiro. Poços lhe dera o conhecimento da elite brasileira. Nova York garantiu o contato com a futura elite financeira norte-americana. O Rio lhe colocaria em contato com a elite financeira européia e com o alto mundo do capitalismo internacional.
A conquista do Rio foi rápida. Na inauguração da primeira agência do Moreira Salles compareceu o presidente do Banco do Brasil, o baiano Marques dos Reis, de quem Walther havia se tornado amigo em Poços. A repercussão foi imediata.
Seu grande amigo e pessoa que o introduziu na sociedade carioca foi Aloysio Salles, filho de Joaquim Salles, jornalista mineiro em cuja casa o mundo político carioca ia jogar biriba após o expediente.
Por intermédio de Aloysio, Walther conheceu José Eduardo Macedo Soares, o mais influente jornalista da época, e Horácio de Carvalho, de quem se tornou amigo por meio de sua mulher, Lili de Carvalho. Durante alguns anos, os três casais -Walther e Helene, Horácio e Lili e Aloysio e sua mulher- dominaram a noite carioca com seu glamour. E foi na noite carioca que Walther conheceu personagens que foram fundamentais para a próxima etapa de sua vida empresarial.
A partir da Segunda Guerra, o alto mundo internacional tornou o Rio o seu ponto de encontro predileto. A cidade tinha passado por profundas reformas nos anos 30, ganhara um ar internacional, e os cassinos garantiam os eventos sociais. Muitos europeus endinheirados, especialmente financistas judeus, instalaram-se por lá, aguardando o fim dos conflitos.
Pouco antes, Walther exercitara sua capacidade de juntar capitais em torno de projetos (em um país carente de capitais), entrando como sócio da Refinaria União, que se descapitalizara depois de protagonizar o mais importante lançamento público de ações dos anos 40.
Mas com os financistas europeus Walther descobriu novas maneiras de se capitalizar e de articular capitais. Dois irmãos, financistas internacionais, ensinaram-lhe os caminhos de um novo mercado que se formava no mundo: o mercado de câmbio e de negociação de títulos de dívida de países.
A Inglaterra saíra da Segunda Guerra devendo para o mundo e montara um plano de pagamento das dívidas com ativos ingleses. Todos as dívidas foram relacionadas, transformando-se em moedas. Havia a libra Brasil, a libra Egito, a libra Suécia e assim por diante. Criou-se um mercado informal em Zurique, onde essas moedas eram negociadas.
Com as informações que recebeu sobre esse mercado, Moreira Salles traçou uma estratégia exemplar com o banco S.G. Warburg. Por meio do café, do qual continuava sendo grande exportador, acumulou dólares e passou a comprar libras egípcias (que valiam menos do que as brasileiras pelo fato de existirem mais ativos ingleses no Egito). Depois, seu braço direito, Homero Souza e Silva, fazia "swaps" com libras Brasil no mercado de Zurique. Os créditos eram depositados no Warburg, que ia comprando, aos poucos, o controle acionário da Brazil Warrant, o maior ativo inglês no Brasil, dono da maior exportadora de café, de armazéns alfandegados, fazendas.
Quando completou o processo de aquisição, ele foi oficializado e o grupo ficou com o direito de remeter dólares para pagamento pelo câmbio oficial, que era metade do valor do paralelo. Ao terminar a operação, bastou a venda de parte das terras da Brazil Warrant para quitar completamente a compra.

O HOMEM PÚBLICO
A partir daí, Moreira Salles viveu seu período mais fulgurante. E é nesse período que dava vazão à parte mais forte de sua personalidade: a de homem público. No final dos anos 40, por indicação de Macedo Soares, Walther assume a carteira comercial do Banco do Brasil. Quando Vargas é eleito presidente, Walther coloca o cargo à disposição, mas é indicado para superintendente da Sumoc (Superintendência de Moeda e Crédito), embrião do futuro Banco Central. Lá, organiza o Departamento Econômico (que ganharia relevância na gestão Gouvêa de Bulhões) e o Departamento de Fiscalização, peça essencial na modernização do sistema financeiro nacional.
Em 1952, com o Brasil preso a uma grave crise cambial, é incumbido por Vargas de negociar a dívida brasileira nos Estados Unidos, na condição de embaixador do Brasil. De todos os homens públicos que conheceu, Vargas foi sempre sua grande admiração, ao lado do Jânio Quadros dos primeiros meses.
Nos Estados Unidos, cumpriu a mais rápida e brilhante carreira que um embaixador brasileiro logrou conquistar. Em pouco tempo, tinha um amplo círculo de amizades, que ia das famílias proprietárias do "The New York Times" e do "Washington Post" aos Rockefeller e às altas autoridades americanas. Sua fase de embaixador galante, que sabia bem receber, correu o mundo diplomático, facilitando bastante suas incursões diplomáticas.
Aliás, a arte de receber sempre foi peça essencial de sua estratégia. Sempre teve vida social, nunca mundana. Em 1950, assim que acumulou mais capital, construiu uma enorme casa na Marquês de São Vicente, que era o centro de encontros exclusivíssimos, disputadíssimos, aos quais não tinha acesso a crônica social.
Levou essa capacidade de bem receber aos Estados Unidos. A ponto de a família do "The New York Times" organizar um jantar em sua homenagem ao qual compareceram, entre outros, Greta Garbo e Marlene Dietrich. Com Greta Garbo teve um relacionamento estreito, uma amizade íntima, da qual resultaram muitas fotos autografadas. Foi para ele que Greta Garbo desabafava sua paixão pelo figurinista Valentino.
A negociação com o Departamento de Estado e do Tesouro americano, para o empréstimo-ponte ao Brasil, é um capítulo único na história diplomática brasileira. O país estava à beira do colapso, sem recursos sequer para importar petróleo. As negociações haviam se iniciado no governo anterior. No meio do percurso foi eleito o presidente Eisenhower e os novos dirigentes não quiseram dar seguimento ao acordo anterior. Em uma semana tensa, viu-se o jovem embaixador comportando-se como o representante de uma nação civilizada, tratando com nações selvagens. Ao final, obteve o empréstimo que deu alguma sobrevida ao governo Vargas.

O NEGOCIADOR
A partir dali, foi figura central para garantir o grande salto de desenvolvimento brasileiro das duas décadas seguintes. O principal empecilho eram as crises cambiais, resultantes do excesso de importações. Moreira Salles negociou a dívida com Getúlio, com JK, com Jango e com Jânio. Voltou a ser embaixador nos Estados Unidos com JK, mas renunciou por não confiar politicamente no presidente.
Depois, ajudou a salvar o mandato de Jango, ao aceitar o cargo de ministro da Fazenda do gabinete parlamentarista, condição fundamental para o parlamentarismo ser aceito pelos militares. Ficou pouco tempo. As crescentes concessões políticas de Jango e Tancredo o desgostaram, levando-o à demissão.
Foi na primeira embaixada nos Estados Unidos que teve início um capítulo especialíssimo em sua vida: a aproximação com Elisinha Moreira Salles, então secretária do presidente da Central do Brasil, e filha de um pequeno empreiteiro mineiro radicado no Rio de Janeiro, em um período em que tentava se reerguer do fim do primeiro casamento.
Foi uma paixão fulminante e fatal que o acompanharia pela fase mais brilhante de sua vida. Elisinha seguiu para os Estados Unidos com ele, mas discretamente para não chocar a sociedade carioca. Tempos depois, Walther obteve algo inédito: a anulação do casamento com Helene, no Vaticano. Isso permitiu um casamento religioso na França, que satisfez a família de Elisinha.
De início uma moça vivaz, mas ainda sem muito traquejo social, em pouco tempo Elisinha se transformou na maior anfitriã do seu tempo, mencionada frequentemente na lista das dez mulheres mundiais que melhor sabiam receber.
Mais uma vez, não se tratava de futilidade. Elisa só se sentia bem no meio dos seus familiares e empregados. Na sociedade, cumpria um papel que ela mesmo se conferiu, de instrumento para as relações diplomáticas do marido e na educação da família, uma autêntica esposa renascentista.

O INVESTIDOR
Seu papel social foi importante para o grande salto que Moreira Salles dá nos anos seguintes. É um período de intensas compras de controle de empresas em dificuldades, sua recuperação e posterior venda. E é o período em que revoluciona o mercado de capitais brasileiros, associando-se aos Rockfeller e ao fundo Delta (de um banco de investimentos americanos, especialista em negociação de dívidas de países do Terceiro Mundo) na criação do fundo Crescinco, que ajuda a reformular o mercado acionário brasileiro.
Nos anos 60, é responsável pela maior emissão privada de capitais, para lançamento da Petroquímica União. Mas quase foi cassado na grande onda pós-Revolução de 64. Por razões estritamente pessoais, Costa e Silva o incluiu em uma relação de cassados. Salvou-o o então ministro Delfim Netto, com um conhecimento todo especial da psicologia de Costa e Silva. Ao ser indagado se a cassação traria alguns problemas ao Brasil, Delfim respondeu: "Quase nenhum, marechal. Apenas teremos problemas com toda a imprensa internacional, que respeita muito o dr. Walther, além dos principais banqueiros internacionais, que muito o admiram. Haverá problemas também com governos dos Estados Unidos e França, onde ele tem muitos amigos. Fora isso, acho que nada acontecerá de mais grave". O marechal recuou.

O REENCONTRO
No começo dos anos 70, problemas pessoais de monta começam a influir em sua trajetória.
A separação de Elisa o joga em uma crise profunda de depressão. Uma operação de ponte de safena, alguns anos depois, obriga-o a parar para pensar. A partir do final dos anos 70, em vez de continuar ampliando o grupo, resolve consolidar os ativos e resolver os passivos. Foi movido por razões pessoais, mas com a mesma intuição genial e salvadora que o consagrou. Foi esse processo que permitiu ao banco sair incólume do grande terremoto dos anos 80 e ingressar consolidado nos anos 90.
A partir dos anos 90, saiu do banco e passou a se dedicar a projetos pessoais, um reencontro com as duas cidades que mais amou: Poços e Rio. Em Poços, criou a Casa da Cultura. No Rio, pretendia transformar a casa da Marquês de São Vicente em uma fundação para formar "advogados e administradores, e nenhum economista". Na época, estava irritadíssimo com as mandracarias dos planos econômicos brasileiros.
Tinha fama de gelado. Não era. Era profundamente afetivo, mas também profundamente contido. Permitia-se poucos momentos de descontração e de emoção. Foi o mais público dos empresários brasileiros. Fui seu confidente por alguns anos. Quando se tratava de negócios, ele nem lembrava os detalhes. Tinha que colhê-los com seus sócios. Quando se tratava de episódios da vida pública, lembrava os detalhes, hora, minuto, minúcias.
Na dura trajetória dos anos 90, sempre que o país ia mal, ele caía em prostração. Sempre que o país melhorava, seu humor melhorava.
Foi um dos brasileiros do século.



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