São Paulo, quinta-feira, 28 de março de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

"Fome, Miséria e Imperialismo"

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR

Uma reminiscência infantil. O ano é 1967, 68, por aí. Lá vou eu dentro do ônibus, com os meus 12, 13 anos, a caminho do colégio em Botafogo, no Rio. O ônibus passa em frente ao cemitério São João Batista. Olho pela janela e vejo nos seus muros brancos, em letras garrafais: "FMI = Fome, Miséria e Imperialismo". Na época, alienado torcedor do Fluminense e leitor do "Jornal dos Sports" (inclusive das crônicas de futebol do Nelson Rodrigues!), não podia imaginar que esse tema desagradável iria me acompanhar até hoje.
Lembrei-me da pichação jurássica a propósito do papel do FMI no colapso da moeda e da economia argentinas. Há quem sustente, com argumentos plausíveis e mais ou menos sofisticados, que esses slogans antiimperialistas estão todos ultrapassados. No entanto o FMI (leia-se: o Tesouro dos EUA) não facilita o trabalho desses comentaristas. Insiste em comportar-se de forma truculenta e desestabilizadora. Decididamente, não é um mar de rosas a vida do latino-americano "globalizado".
Na caso da Argentina, a atuação de Washington tem sido espantosa, mesmo para aqueles que, como eu, pouco ou nada de positivo esperam do FMI. Sintomaticamente, até o ministro Malan protestou, em público, contra o tratamento que os argentinos vêm recebendo.
O fator que mais contribuiu para desencadear a corrida contra o peso nos últimos dias foi a multiplicação de indícios de que os EUA e o FMI resolveram, definitivamente, adotar uma atitude de grande intransigência em relação à Argentina. A gota d'água foram declarações duras do governo dos EUA e da cúpula do FMI, associadas a novas exigências de ajustamento e reforma como precondição para o apoio financeiro de emergência solicitado pela governo Duhalde.
Cristalizou-se a percepção de que a "ajuda" financeira externa vai demorar e será de proporções modestas. Não envolverá, aparentemente, recursos adicionais, mas apenas a liberação de recursos já outorgados à Argentina e cuja liberação foi suspensa durante o governo De la Rúa. Suspeita-se que os desembolsos mal darão para cobrir os compromissos de juros e amortizações que a Argentina tem com o próprio Fundo e outras entidades multilaterais sediadas em Washington.
E, ainda por cima, esse modesto apoio financeiro está condicionado a uma extensa e severa lista de exigências. Essa lista é do tipo "open-ended" e parece crescer a cada semana. As últimas versões divulgadas pela imprensa argentina incluem, entre outros, os seguintes itens: a) flutuação pura e livre do peso, para que a moeda argentina encontre o seu "valor de mercado"; b) medidas de restrição da oferta monetária; c) cortes adicionais de gastos do governo nacional; d) ajuste rigoroso das Províncias, incluindo demissões de funcionários; e) resgate urgente dos títulos que vêm servindo como financiamento emergencial para os governos provinciais; f) reestruturação dos bancos oficiais, envolvendo fusões e participação de capital privado; g) mudanças na lei de falências, levando em conta aspectos da legislação dos EUA; h) mudanças na lei de "subversão econômica", em vigor há mais de 25 anos, e que alguns juízes estão aplicando aos bancos; i) mecanismos legais de proteção aos bancos estrangeiros na Argentina; e j) definições sobre como será encaminhada a renegociação da parte da dívida externa que está em moratória.
Qualquer governo teria dificuldade de atender todas essas exigências. Nas condições da Argentina, com a economia em depressão, ameaçada de hiperinflação, o sistema financeiro destroçado, uma crise social e política da maior gravidade, insistir rigidamente na adoção de um programa desse tipo chega às raias da loucura.
E o pior, leitor, é que pode haver método nessa loucura. A insistência do FMI na flutuação "pura", sem intervenções, vem ao encontro do que seria, segundo se noticiou, a preferência de uma parte da equipe do Banco Central, inclinada à dolarização total como saída para a crise monetária.
Suspendendo as intervenções cambiais, o Banco Central preservaria o nível de suas reservas em moeda estrangeira, o que facilitaria posteriormente a recompra da base monetária em pesos. O equivalente em dólares dessa base monetária já foi drasticamente reduzido pela brutal depreciação do peso argentino. Porém, quanto menor o nível das reservas maior será a taxa de câmbio requerida para viabilizar a recompra da base monetária e dolarizar integralmente a economia.
Oficialmente, o FMI e o governo dos EUA não defendem e nem patrocinam a dolarização. O Equador, por exemplo, tomou esse rumo recentemente por decisão unilateral, isto é, sem acordo com a Reserva Federal (Federal Reserve) ou garantias do governo dos EUA. Entretanto, coincidência ou não, como notou o último relatório anual da Comissão Econômica para a América Latina, "os recursos fornecidos pelo Fundo Monetário Internacional (...) foram cruciais para que o Banco Central consolidasse a dolarização da economia [do Equador"".
Uma vez aplicada a castração monetária, quem sabe se a lista de exigências do FMI à Argentina não sofreria uma súbita e misteriosa flexibilização?


Paulo Nogueira Batista Jr., 46, economista e professor da Fundação Getúlio Vargas-SP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela é..." (Boitempo Editorial).
E-mail - pnbjr@attglobal.net


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