São Paulo, Domingo, 28 de Março de 1999
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O gênio de Garoto do Banjo

LUÍS NASSIF
Ouvi falar pela primeira vez de Garoto do Banjo, o Aníbal Augusto Sardinha, lá pelos idos de 1966. Nem lembro a circunstância. Conversávamos sobre Baden Powell, meu primo Oscar e eu, quando surgiu o nome de Garoto. Meu tio Léo interrompeu a conversa para contar que, no seu tempo, Garoto disputava com Jacob do Bandolim o título de melhor instrumentista de quatro cordas. Garoto era mais inventivo, e Jacob, mais detalhista, dizia ele.
Tio Léo era a antologia da família. Carioca, fora remador do Flamengo, aluno de violão do gênio cego Levino Conceição, violonista fluminense, e colega de Dilermando Reis -que Levino conheceu em Guaratinguetá e trouxe para o Rio, como discípulo. Em sua adolescência no Rio, teve aulas no histórico conservatório na rua do Catete, onde lecionavam Levino, João Pernambuco e outros grandes da época. Jacob chegou a ir em sua casa uma ou duas vezes, pelo que nos contava.
Confesso que, com 16 anos, ainda não sabia muito sobre Jacob, muito menos sobre Garoto. Meus ídolos no choro eram Dilermando, ao violão, e Waldir Azevedo, ao cavaquinho, sem contar Altamiro Carrilho e sua bandinha. Era o máximo que chegava em Poços. Sabíamos apenas que Garoto era autor de "Duas Contas" ("seus olhos são duas contas pequeninas"), que era a música preferida da rapaziada mais velha de Poços, que tocou os primórdios da bossa nova.
Comentei sobre Garoto com meu pai, que, grande freqüentador dos cassinos de Poços, na época do jogo, lembrava-se dele se apresentando, e tendo o mesmo destaque dos grandes artistas do seu tempo.

Confraria dos fãs
Foi só em São Paulo que passei a fazer parte da confraria dos fãs de Garoto. Comecei a freqüentar o bar do Alemão, reduto da boemia jornalística da época e dos grandes músicos cariocas que passavam por São Paulo. Freqüentavam o bar os dois maiores fãs que Garoto já teve. Um deles, Nelsinho Risada, tocador de cavaquinho, guardava na carteira um recorte de jornal falando da morte de Garoto, em 1954. Cada vez que tirava o recorte da carteira, vinham-lhe lágrimas aos olhos. O outro, Heraldo de Souza, mineiro tímido, corretor de imóveis, grande violonista, conhecia todo o repertório de Garoto. Morreu lá por volta de 1980, deixando um vazio no bar.
Com eles, comecei a conhecer o mestre, saber como tocava violão com os dedos (sem utilizar as unhas), dominava todos os instrumentos de corda, fazia desde valsas convencionais (como "Desvairada'), dobrados (o Hino do Quarto Centenário, dele e de Chiquinho do Acordeon, que nada ficava a dever aos dobrados de John Phillip de Souza), peças para violão, moderníssimas.
Depois, comprei de Ronoel Simões (o maior colecionador de gravações de violão do mundo) uma fita com gravações de Garoto e ouvi a fita que o velho Antônio D'Áuria gravou com ele, uma semana antes de sua morte, e que até hoje permanece inédita.

Revolucionário
Com o tempo, a importância de Garoto foi se revelando por completo. Revolucionou o choro, criou a moderna escola de violão brasileiro, foi o verdadeiro precursor da bossa nova (inclusive dando aulas a Carlos Lyra, pouco antes de morrer). Anos depois, ganhei uma fita na qual Garoto tocava "Dinorá" ao bandolim. Na música estavam presentes todos os recursos que, anos depois, permitiriam a Jacob consolidar a escola de bandolim brasileira. Garoto foi o precursor de Jacob.
A música popular brasileira do século tem algumas pessoas seminais. Garoto foi uma delas. Era uma espécie de Mozart, no talento e na fragilidade. Intrinsecamente musical, como todo gênio tinha a falta de prática para a vida. Não fez carreira nos Estados Unidos porque sua primeira mulher sofreu discriminações de cor. No Rio, espalhavam-se histórias depreciativas sobre ela, e de defesa da segunda mulher.
Foi mestre Radamés Gnatalli que me contou que era sócio de Garoto em um sítio. E o músico lhe entregava dinheiro, em sigilo, para que mandasse para a mulher paulista, porque a segunda lhe proibia a ajuda.
Morreu com pouco mais de 40 anos, sem ter a mais pálida noção sobre sua importância para a música brasileira. Hoje existe um reconhecimento amplo sobre sua obra. Mas as manifestações mais sinceras continuam sendo dos velhos chorões paulistas, que guardam em suas carteiras os recortes sobre a morte do mestre.

E-mail: lnassif@uol.com.br


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