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O gênio de Garoto do Banjo
LUÍS NASSIF
Ouvi falar pela primeira vez
de Garoto do Banjo, o Aníbal
Augusto Sardinha, lá pelos
idos de 1966. Nem lembro a
circunstância. Conversávamos sobre Baden Powell, meu
primo Oscar e eu, quando surgiu o nome de Garoto. Meu tio
Léo interrompeu a conversa
para contar que, no seu tempo,
Garoto disputava com Jacob
do Bandolim o título de melhor instrumentista de quatro
cordas. Garoto era mais inventivo, e Jacob, mais detalhista,
dizia ele.
Tio Léo era a antologia da
família. Carioca, fora remador do Flamengo, aluno de
violão do gênio cego Levino
Conceição, violonista fluminense, e colega de Dilermando
Reis -que Levino conheceu
em Guaratinguetá e trouxe
para o Rio, como discípulo.
Em sua adolescência no Rio,
teve aulas no histórico conservatório na rua do Catete, onde
lecionavam Levino, João Pernambuco e outros grandes da
época. Jacob chegou a ir em
sua casa uma ou duas vezes,
pelo que nos contava.
Confesso que, com 16 anos,
ainda não sabia muito sobre
Jacob, muito menos sobre Garoto. Meus ídolos no choro
eram Dilermando, ao violão, e
Waldir Azevedo, ao cavaquinho, sem contar Altamiro Carrilho e sua bandinha. Era o
máximo que chegava em Poços. Sabíamos apenas que Garoto era autor de "Duas Contas" ("seus olhos são duas contas pequeninas"), que era a
música preferida da rapaziada mais velha de Poços, que tocou os primórdios da bossa nova.
Comentei sobre Garoto com
meu pai, que, grande freqüentador dos cassinos de Poços, na
época do jogo, lembrava-se dele se apresentando, e tendo o
mesmo destaque dos grandes
artistas do seu tempo.
Confraria dos fãs
Foi só em São Paulo que passei a fazer parte da confraria
dos fãs de Garoto. Comecei a
freqüentar o bar do Alemão,
reduto da boemia jornalística
da época e dos grandes músicos cariocas que passavam por
São Paulo. Freqüentavam o
bar os dois maiores fãs que Garoto já teve. Um deles, Nelsinho Risada, tocador de cavaquinho, guardava na carteira
um recorte de jornal falando
da morte de Garoto, em 1954.
Cada vez que tirava o recorte
da carteira, vinham-lhe lágrimas aos olhos. O outro, Heraldo de Souza, mineiro tímido,
corretor de imóveis, grande
violonista, conhecia todo o repertório de Garoto. Morreu lá
por volta de 1980, deixando
um vazio no bar.
Com eles, comecei a conhecer
o mestre, saber como tocava
violão com os dedos (sem utilizar as unhas), dominava todos
os instrumentos de corda, fazia desde valsas convencionais
(como "Desvairada'), dobrados (o Hino do Quarto Centenário, dele e de Chiquinho do
Acordeon, que nada ficava a
dever aos dobrados de John
Phillip de Souza), peças para
violão, moderníssimas.
Depois, comprei de Ronoel
Simões (o maior colecionador
de gravações de violão do
mundo) uma fita com gravações de Garoto e ouvi a fita que
o velho Antônio D'Áuria gravou com ele, uma semana antes de sua morte, e que até hoje
permanece inédita.
Revolucionário
Com o tempo, a importância
de Garoto foi se revelando por
completo. Revolucionou o choro, criou a moderna escola de
violão brasileiro, foi o verdadeiro precursor da bossa nova
(inclusive dando aulas a Carlos Lyra, pouco antes de morrer). Anos depois, ganhei uma
fita na qual Garoto tocava "Dinorá" ao bandolim. Na música
estavam presentes todos os recursos que, anos depois, permitiriam a Jacob consolidar a
escola de bandolim brasileira.
Garoto foi o precursor de Jacob.
A música popular brasileira
do século tem algumas pessoas
seminais. Garoto foi uma delas. Era uma espécie de Mozart, no talento e na fragilidade. Intrinsecamente musical,
como todo gênio tinha a falta
de prática para a vida. Não fez
carreira nos Estados Unidos
porque sua primeira mulher
sofreu discriminações de cor.
No Rio, espalhavam-se histórias depreciativas sobre ela, e
de defesa da segunda mulher.
Foi mestre Radamés Gnatalli que me contou que era sócio
de Garoto em um sítio. E o músico lhe entregava dinheiro,
em sigilo, para que mandasse
para a mulher paulista, porque a segunda lhe proibia a
ajuda.
Morreu com pouco mais de
40 anos, sem ter a mais pálida
noção sobre sua importância
para a música brasileira. Hoje
existe um reconhecimento amplo sobre sua obra. Mas as manifestações mais sinceras continuam sendo dos velhos chorões paulistas, que guardam
em suas carteiras os recortes
sobre a morte do mestre.
E-mail: lnassif@uol.com.br
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