São Paulo, sexta-feira, 28 de junho de 2002

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OPINIÃO ECONÔMICA

A difícil convivência com a ignorância

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS

Os deuses não me premiaram com a virtude da paciência, quando lido com o despreparo profissional de outras pessoas. Como, ao longo de minha já longa carreira, aventurei-me com entusiasmo em vários campos da atividade humana -economia, mercados financeiros e, mais recentemente, jornalismo-, minha postura sempre crítica em relação ao irracional acabou me rendendo um número muito grande de críticos.
Em momentos como o que estamos vivendo, essa minha agressividade analítica manifesta-se de forma ainda mais intensa. O nível de despreparo de economistas e jornalistas para entender o que está acontecendo é absolutamente incrível. Confesso que poucas vezes os erros de análise, de pessoas que lidam com a opinião pública e as expectativas da sociedade, atingiram um nível tão absurdo como agora.
Como na sociedade moderna vivemos todos -ou quase todos os que realmente contam- ligados on-line, essa incapacidade de entender o que está ocorrendo é terrivelmente perigosa. Quase entramos em uma crise terminal na semana passada! Felizmente, para todos nós, a direção do Banco Central foi eficiente nas suas ações recentes e limitou os danos que poderiam ser criados pelos comentários sem sentido e, em alguns casos, pela má-fé de terceiros.
Procurando trazer a meu leitor da Folha um pouco de racionalidade para entender o momento que estamos vivendo, pretendo hoje refletir sobre as origens da crise atual. Elas são profundas e estão entre nós há muito tempo. Os objetivos de longo prazo definidos pela equipe do ministro Malan, depois da estabilização de nossa economia em 1996, eram ambiciosos. Previam para o Brasil uma economia de mercado nos moldes da que existe nos EUA, com liberdade total para a ação dos agentes privados e uma presença muito limitada do Estado. Embora nunca explicitado de maneira clara pelo governo, esse era o rumo que unificava as ações de reformas institucionais e da ação administrativa de seus vários braços operacionais.
Entre o plano de vôo traçado e a realidade do país havia uma armadilha que não foi devidamente entendida pelos estrategistas de Brasília: a sociedade brasileira real não é a americana. Muito contribuiu para esse terrível erro de análise o entusiasmo com os resultados iniciais do Plano Real. A adesão maciça dos brasileiros ao governo FHC era circunstancial, motivada pelo término do pesadelo da hiperinflação controlada dos anos anteriores a 1994. Não havia, entretanto, uma percepção clara do que realmente estava por trás da ação do governo. Os brasileiros queriam uma economia estável e estavam preparados para alguns sacrifícios que permitissem a perenização da estabilidade monetária. Mas exigiam uma melhoria nas condições de vida, com emprego e rendas crescentes no longo prazo.
Enquanto essa fatura ficou dentro de uma gaveta do tempo, o governo teve condições políticas e de opinião pública para tocar o seu projeto. E aí as suas inconsistências estruturais começaram a definir o quadro de crise de hoje. A mais importante delas foi a existência de limitações objetivas no funcionamento de nosso tecido econômico, que impunham limites à racionalidade do modelo adotado. Mercados ineficientes e limitados por uma institucionalidade velha conflitavam com os principais princípios teóricos exigidos. Também jogou contra o entusiasmo ideológico da equipe econômica de FHC a realidade dos mercados internacionais, submetidos a restrições importantes no seu funcionamento racional.
Chegamos ao ano eleitoral de 2002 com uma economia vulnerável, sem crescimento e com a renda dos brasileiros estagnada. Com uma oposição agressiva e mais bem preparada para enfrentar um novo embate eleitoral, era previsível, mesmo para o mais limitado dos analistas, que tivéssemos dificuldades. A eventualidade de uma vitória de um grupamento político com uma ideologia confusa; uma história complicada; nenhuma experiência de gestão macroeconômica; e principalmente um discurso hostil aos mercados financeiros e ao mundo globalizado certamente traria um nervosismo irracional. Para um país que precisa captar mais de US$ 50 bilhões todo ano, uma crise de nervos como essa poderia ser gravíssima.
Mas o governo continuou na sua posição autista e imperial em relação à sociedade. Apertou ainda mais as metas de inflação, decidiu implantar um novo regime de liquidação de pagamentos no sistema financeiro, liberou a Petrobras de qualquer regra na fixação dos preços dos derivados de petróleo e resolveu devolver antecipadamente US$ 4 bilhões ao FMI. Quando o candidato Lula disparou nas pesquisas em razão de seu eficiente programa eleitoral, o céu desabou sobre todos nós. A visão do inferno pelos mercados foi suficiente para destruir a quimera ideológica dos últimos anos. Voltamos ao limbo dos países inviáveis, apesar de todos os nossos méritos acumulados, nos últimos anos.
A histeria dos últimos dias, com a irracionalidade dominando as manifestações públicas, aqui e no exterior, é o custo elevado que estamos pagando pelos erros do governo. Felizmente nossa realidade política, com uma institucionalidade de comunicação dos candidatos com a sociedade muito boa, está permitindo que um debate mais claro sobre as alternativas disponíveis se estabeleça. O PT está sendo obrigado a assumir compromissos administrativos, que devem levar o partido a um posicionamento mais eficiente no caso de uma vitória em novembro. Por outro lado, os riscos de sua vitória também vão permeando a sociedade. Mas só o resultado eleitoral vai tirar o Brasil da situação instável que estamos vivendo. O resto é espuma!


Luiz Carlos Mendonça de Barros, 59, engenheiro e economista, é sócio e editor do site de economia e política Primeira Leitura. Foi presidente do BNDES e ministro das Comunicações (governo FHC).
Internet: www.primeiraleitura.com.br
E-mail - lcmb2@terra.com.br


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