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São Paulo, quinta-feira, 28 de agosto de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

A volta da conversibilidade

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR

Quando estou em São Paulo, raramente saio de um pequeno quadrilátero formado pelas ruas Melo Alves, Lorena, Padre João Manuel e Estados Unidos. Domingo à tarde, estava numa das margens do quadrilátero, atravessando a Padre João Manuel, quando uma senhora me viu, desligou abruptamente o celular e ergueu os braços: "Acompanho tudo o que você fala e escreve; sempre gosto, sempre concordo", e disparou uns tantos outros elogios enfáticos. Adorei.
De repente, porém, a conversa tomou um rumo menos promissor. "Beleza não me importa", disse ela, "só as idéias!", e apontava para o alto como se as idéias estivessem flutuando por cima das nossas cabeças. Bem sei que não sou nenhum Alain Delon, longe disso, mas a insinuação me pareceu desnecessária e ligeiramente deprimente.
Aí veio o pior: "Também admiro muito o Eduardo Giannetti", disse a simpática senhora, que desandou a elogiá-lo também. Ora, eis aí duas admirações rigorosamente incompatíveis, que se anulam reciprocamente. Tratei de me desvencilhar o mais rápido que pude e segui caminho.
Veja, leitor, a sinistra coincidência. Justamente na véspera, assistira na televisão, com grande perplexidade, a uma entrevista em que o referido economista defendia a conversibilidade do real -uma das propostas mais absurdas que se possa imaginar. Outro entrevistado no programa, um diretor do Banco Central, também apoiava a idéia, ainda que não necessariamente para aplicação imediata.
Conversibilidade significa a inexistência de restrições à transformação de moeda nacional em estrangeira e vice-versa. Era um dos elementos centrais da malfadada "lei de conversibilidade", o regime monetário que vigorou na Argentina de 1991 até 2001 e terminou em uma das maiores crises da história argentina e latino-americana.
Quem relançou essa idéia recentemente no Brasil foi um economista tucano, com longa trajetória nos mercados financeiros. Os jornais noticiam que o ministro Palocci manifesta interesse em discutir o assunto.
Que esse tipo de sugestão possa ressurgir, com certa repercussão, depois de tudo o que aconteceu na América Latina e em outras regiões do mundo diz muito sobre a qualidade do debate econômico brasileiro. A argumentação é, sob certos aspectos, semelhante à que se usava na Argentina de Menem e Cavallo. Trata-se supostamente de inspirar confiança e gerar "credibilidade", proporcionando a garantia de que a moeda nacional poderá ser livremente trocada por dólares ou outras moedas fortes. A promessa é que essa garantia contribuiria para a redução das taxas de juro no Brasil.
A esta altura, o brasileiro já terá percebido que "credibilidade" é uma das palavras mais prostituídas do vocabulário econômico. Tudo quanto é proposta indecente, ou difícil de defender, procura abrigar-se atrás desse biombo.
Mas, para não levantar suspeitas terríveis e talvez injustas, digamos apenas que a interação entre economistas e instituições financeiras não tem beneficiado a discussão de temas econômicos. Algumas propostas que aparecem e reaparecem talvez se expliquem apenas pela perda de massa cerebral que costuma estar associada à prolongada permanência nos meios financeiros.
Não vamos esquecer o óbvio ululante: o Brasil é um país subdesenvolvido, que padece de um sem-número de vulnerabilidades. A moeda brasileira é frágil, está longe de consolidada, como ficou evidente (mais uma vez) na crise de 2002. A situação das contas públicas e das contas externas demandará cuidados intensivos ao longo dos próximos anos.
A dívida pública cresceu rapidamente durante o reinado tucano, apesar do grande aumento da carga tributária. O passivo externo do Brasil também cresceu muito nesse período e continuará pesando por longo tempo sobre nossos ombros.
As reservas em moeda estrangeira no Banco Central são modestas quando comparadas aos ativos financeiros em moeda nacional, em especial aos que constituem obrigações do governo. Em sua maior parte, esses ativos financeiros domésticos são muito líquidos, isto é, podem ser transformados em moeda rapidamente. Em outras palavras, é imensa a demanda potencial por moeda estrangeira, particularmente em momentos de incerteza e crise.
Nesse contexto, como pensar em dar plena conversibilidade à moeda brasileira? Precisamos, ao contrário, reforçar e aperfeiçoar os controles cambiais e a regulamentação dos movimentos de capital.
Tudo seria diferente, é claro, se estivéssemos em outro país. Digamos, na Suíça. O franco suíço é conversível, como se sabe, e não há problemas. Seria uma maravilha se, ao sairmos das nossas casas, nos deparássemos com vacas saudáveis pastando tranquilamente, uma bela paisagem alpina ao fundo. Nossos bancos estariam sempre abarrotados de dinheiro ilegal de todas as partes do mundo. Enfim, um paraíso financeiro.
Mas, quando saio no meu quadrilátero (também conhecido como a "Manhattan paulista"...), o que encontro são pedintes em cada esquina, às vezes pessoas e até famílias morando na rua.
Depois de certa hora da noite poucos se animam a sair de casa. E a "Manhattan paulista" toma ares de cidade fantasma.


Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

E-mail - pnbjr@attglobal.net


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