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São Paulo, domingo, 28 de dezembro de 2003

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LUÍS NASSIF

A Escola Sete de Setembro

A parte interna do prédio foi demolida. Mantiveram a fachada, não sei por quê. Apenas para lembrar o que o prédio já foi, a Escola Sete de Setembro da dona Nicolina Bernardes, onde fiz o primário.
Na parte da frente havia algumas lojas. Nos fundos, a escola, quatro salas, uma embaixo, três em cima, uma para cada ano, e o recreio no quintal pequeno, dividido entre o das meninas e o nosso.
Naqueles tempos, idos dos anos 50, havia duas escolas primárias principais disputando os meninos da cidade: a Sete Setembro, da dona Nicolina, e a da dona Mariazinha. Havia a da dona Nésia também.
Dona Nicolina era amiga de meu pai. Acho até que a Farmácia Central teve um período como inquilino daquele prédio.
Quando entrei na escola, com seis anos e tanto, a expectativa de podermos vir a ser alunos da dona Nicolina deixava todos assustados. Foi com alívio que recebemos a notícia de que a vaga de professora havia sido preenchida por dona Suzel.
Na primeira semana de aula, dona Nicolina colocou os alunos, um a um, para lavar as mãos na sua frente, na aula de asseio. Na minha vez abri a torneira, molhei as mãos, depois fechei a água enquanto ensaboava. Ela me deu bronca, dizendo que estava considerando a escola dela sovina.
No segundo ano, veio a dona Remilda Furquim, de uma família que trabalhava nos Correios. Por alguns meses, sem professora, dona Nicolina assumiu as aulas. Ficamos aliviados quando chegou dona Remilda.
No terceiro ano, foi a vez de dona Mara; no quarto, de dona Neuzinha dos Reis, quase todas em início de carreira, mas sendo conduzidas pelo comando disciplinador da dona Nicolina.
Nunca deu uma moleza sequer para mim. Lembro no segundo ano, no curto período em que lecionou para a classe, que me deu nota alta em aplicação e baixa em comportamento. Fiquei tão temeroso da reação de meu pai que tentei falsificar sua assinatura no boletim. Ele descobriu e, aí sim, ficou uma fera.
De outra feita, no quarto ano primário, dona Nicolina mandou um recado na caderneta dizendo que "Luís continua se distraindo como um sábio nas aulas". Meus pais receberam o aviso com um misto de censura e de orgulho.
Até a formatura, não recebi um sorriso sequer de dona Nicolina, um elogio, um dengo, apenas repreensões duras toda vez que aprontava.
Por isso mesmo foi uma enorme surpresa a formatura do primário, feita junto com a da escola David Campista. Pela ordem da entrega dos diplomas, caberia à dona Neuzinha entregar o meu. Dona Nicolina se adiantou, pegou o canudo, fez um baita elogio público que me deixou estatelado e me entregou pessoalmente o diploma. Só ali descobri que o ar severo fazia parte do padrão de educadora de tempos anteriores ao meu. Por dentro, era uma manteiga derretida.
Lembrei-me de um aniversário de sua sobrinha Vivian em que a aniversariante veio toda admirada para o meu lado, dizendo ter sabido que eu lera quase toda a coleção infantil do Monteiro Lobato já no segundo ano. Quem contou? A dona Nicolina, é claro. Só quando se rompeu a relação de educadora e educando, quando saí das suas asas para entrar no ginásio, é que a máscara caiu, deixando transbordar o afeto.
Depois da formatura do primário, acho que conversei com dona Nicolina uma ou duas vezes. Mas ela estava sempre na Farmácia Central, quase em frente à sua escola, se informando sobre seu discípulo.
Na final do Festival de Música de São João da Boa Vista de 1967, estavam lá meus pais e tios, os empregados da Farmácia e dona Nicolina, acompanhando, torcendo e, depois, vindo me cumprimentar com um sorriso que nunca demonstrou na escola.
Pouco antes de morrer, internou-se na Santa Casa para tratar de um câncer virulento. Não tive forças para visitá-la, para dizer-lhe do papel na minha formação.
Acho que nem seria necessário. Essas vocações de educadora nunca necessitaram de elogios maiores. Elas se comprazem apenas em observar o que plantaram florescer.


E-mail - Luisnassif@uol.com.br


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