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OPINIÃO ECONÔMICA
Como digerir a China e a Índia?
RUBENS RICUPERO
Nove de cada dez americanos acreditam que a ligação
entre comércio e desemprego vá
ser uma das questões decisivas
nas eleições deste ano, conforme
se está vendo com o avanço do senador Edwards nas primárias.
Um dos próximos testes é Ohio,
que perdeu 247 mil empregos em
três anos, 67 mil no ano passado,
mais que qualquer outro Estado
-exceto Michigan. Para enfrentar a ameaça de Edwards, o favorito democrata, o senador Kerry,
teve de prometer que tomará medidas contra firmas que transfiram empregos para o exterior. Na
Europa, não é diferente. Dias
atrás, a manchete principal do
"Le Monde" foi: "Chirac está
preocupado com uma França
sem fábricas". O artigo dizia que
o presidente estava convocando
uma reunião especial só para tratar da deslocalização de indústrias francesas para o estrangeiro.
É difícil hoje encontrar país desenvolvido em que esse tema não
ocupe atenção central da agenda
política, às vezes misturado ao
problema explosivo do aumento
de imigrantes. Faz mais de meio
século que a ONU convocou, em
1947, a Conferência de Havana,
cujo nome oficial era Conferência
das Nações Unidas sobre Comércio e Emprego. Naquele tempo, logo após o fim da Segunda Guerra,
ainda se acreditava na possibilidade de alcançar e manter o pleno emprego. O comércio era visto
nessa ótica positiva, na sua relação com a geração, não a destruição de empregos.
Em Havana, aprovou-se a Carta da Organização Internacional
do Comércio (OIC), que refletia a
prioridade do emprego e mostrava-se atenta a outras ameaças e
desequilíbrios, como os decorrentes das violentas oscilações de preços de produtos primários -o café, para citar um caso clássico.
A Carta não foi, contudo, jamais submetida ao Senado americano, abortando-se a OIC, substituída pelo Gatt, hoje OMC (Organização Mundial do Comércio). Aos poucos, perdeu-se de vista o objetivo do emprego, até que
ele começa a retornar agora, para, como um espectro do passado,
assombrar as negociações comerciais e o processo político-eleitoral.
Como explicar que o comércio,
durante longo tempo quase uma
questão técnica para especialistas, volte de repente aos comícios
de praça pública e provoque protestos de milhares de pessoas, como em Seattle, ou até com mortos
e feridos, como em Gênova? A culpa para alguns seria da globalização da produção, da facilidade
para deslocar fábricas para os paraísos da mão-de-obra barata,
como a China.
A tendência seria agravada
com o "outsourcing", isto é, sem
necessidade de transferir usinas,
a possibilidade de abastecer-se
dos serviços necessários -desde
contabilidade até programação
de computadores- em países como a Índia, obtendo o serviço à
distância, depositado em casa pela internet. Tendo em vista que os
países ricos são hoje, esmagadoramente, economias de serviços, o
potencial de estrago parece, à primeira vista, muito mais grave do
que na transferência de indústrias já em franco declínio, como
a têxtil e a de calçados.
O vínculo disso tudo com o comércio provém da liberalização
comercial. Se não fosse a redução
substancial ou a eliminação de
muitas barreiras nas negociações
dos últimos 20 anos, a revolução
tecnológica em comunicações e
transportes não seria por si só suficiente para possibilitar às empresas transnacionais produzir
nos locais de custo mais baixo e
importar o produto.
É curioso como os pais do livre
comércio -Adam Smith e David
Ricardo- estavam conscientes
do risco de uma liberalização de
choque. Referindo-se às indústrias imaturas, Adam Smith escreveu: "Se essas tarifas altas e
proibições fossem removidas de
um golpe, o mercado doméstico
poderia ser inundado por produtos similares estrangeiros mais
baratos, de maneira tal a privar
de repente de seus empregos e
meios de subsistência muitos milhares de pessoas do nosso próprio
povo".
David Ricardo, por sua vez,
aconselhava que a abolição das
"Poor Laws" ou das "Corn Laws"
só se fizesse "com as medidas
mais graduais possíveis", a fim de
minimizar os efeitos distributivos
negativos. Aqui também, conforme ocorreu no caso do emprego,
depressa se esqueceu das lições de
sabedoria dos clássicos.
Se se olhar um pouco mais a
fundo, no entanto, vai-se ver que
a verdadeira causa da ameaça
não se origina, apenas ou principalmente, nem na deslocalização
permitida pelas novas tecnologias
nem na facilidade de importar
devido à liberalização. Nas décadas de 1950 e 1960, tinha havido
um fenômeno parecido: a súbita
emergência do Japão e da Itália
como potências exportadoras de
manufaturas. Da mesma forma
que hoje com as telecomunicações, estava também em curso
uma revolução nos transportes e
mediante a introdução dos plásticos e materiais sintéticos. A penetração das exportações japonesas
e italianas nos mercados dos EUA
e da Europa aumentou igualmente muito rápido. Havia, porém, uma diferença: todos os países avançados, e não apenas o Japão e a Itália, se expandiam de
modo acelerado. Foram os chamados "anos gloriosos", até 1973,
quando se crescia a 5% ou mais.
Não foi difícil, assim, acomodar
a ascensão italiana e nipônica absorvendo as importações em aumento, sem maiores preocupações com a perda de empregos. Ao
contrário, nesses mesmos anos, a
indústria na Alemanha e na
França crescia tanto que era obrigada a importar mão-de-obra da
Itália, da Espanha e de Portugal.
Quando todos crescem, os últimos a emergir não precisam devorar os primeiros, a fim de conquistar um lugar ao sol. Há espaço para se espalhar pois novos
mercados são criados. É o que sucede com a China, que, graças ao
crescimento acelerado, converteu-se num dos primeiros mercados para os vizinhos, para o Brasil, a Argentina e está sendo responsável pela recuperação do Japão. O problema é que há poucos
casos comparáveis e todos na
Ásia. O resto do mundo, nós incluídos, não consegue ter crescimento capaz de expandir o mercado, para os de dentro ou para os
de fora.
A grande incógnita, em nossos
dias, é, pois, como "digerir" o gigante chinês em manufaturas e o
indiano em serviços quando as
nações ricas crescem quase só vegetativamente e já sofrem de desemprego estrutural. Será possível, em contexto econômico de
baixo crescimento, manter ou
ampliar o nível de abertura do
sistema comercial e, além disso,
absorver a agressiva ofensiva exportadora do Oriente?
Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
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