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São Paulo, quinta-feira, 29 de maio de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

A política externa em boas mãos

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

"Hay gobierno? Soy contra." É o lugar-comum que ultimamente vem sendo lançado contra mim por detratores, conhecidos, amigos e até mesmo familiares (toda família é um ninho de rivalidades e neuroses).
Digito essas frases e suspiro. Bem sei que a coerência é uma virtude secundária e até um pouco suspeita. Pode ser apenas o disfarce para uma teimosia ignara e obtusa. Mas, enfim, volto a perguntar: como posso, em sã consciência, mudar a minha avaliação crítica da política econômica brasileira? Nessa área, o novo governo ainda está nos devendo as mudanças prometidas durante a campanha eleitoral e reiteradas depois da eleição.
Onde estão ocorrendo mudanças positivas é na área da política externa. Nesse campo, o governo Lula começou a se distanciar da orientação do governo Fernando Henrique Cardoso. Tomemos o exemplo da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), que, como disse o ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, é a mais complexa e politicamente sensível das negociações em andamento.
O presidente da República colocou o dedo na ferida quando declarou, anteontem, que "os EUA querem negociar seus temas sensíveis na OMC (Organização Mundial do Comércio), mas negociar os temas sensíveis para o Brasil na Alca". De fato, Washington deseja remeter para a OMC temas prioritários para o Brasil, como o uso protecionista da legislação antidumping e a política de defesa da agricultura. Ao mesmo tempo, os EUA insistem em que a Alca deve ir além da OMC em assuntos do seu interesse, mas inconvenientes para o Brasil, como serviços, investimentos, compras governamentais e propriedade intelectual.
Recomendo aos interessados nesse tema a leitura do texto apresentado na semana passada pelo ministro Celso Amorim no Fórum Nacional ("Inserção Global do Brasil: OMC, Mercosul, Alca e Zona de Livre Comércio do Brasil com a União Européia", Rio de Janeiro, 21 de maio de 2003, www.mre.gov.br). Trata-se de importante avaliação das negociações comerciais em que está envolvido o Brasil.
A negociação da Alca, como se sabe, segue um cronograma intenso e ingressou em fase de definições e troca de ofertas. Os EUA resolveram "bilateralizar" as suas ofertas de acesso a mercado de bens, apresentadas em fevereiro, reservando para os países do Mercosul as condições menos favoráveis.
Em resposta, Brasil e Argentina decidiram não apresentar oferta em serviços. Nenhum dos quatro países do Mercosul apresentou ofertas em investimentos ou compras governamentais. Nessas três áreas, assim como na de propriedade intelectual, lembra o ministro das Relações Exteriores, "verifica-se grande empenho norte-americano em obter disciplinas mais ambiciosas do que as da OMC, postura que contrasta com a recusa dos EUA em discutir subsídios agrícolas e instrumentos de defesa comercial de interesse brasileiro" (Celso Amorim, op. cit., pág. 2).
Vários setores da indústria e da agricultura brasileira cultivam a esperança de que a Alca possa nos proporcionar grande acesso ao mercado norte-americano. No entanto, observa o nosso chanceler, "as perspectivas de melhoria de acesso não são encorajadoras, na medida em que a oferta inicial norte-americana não acena com reduções de barreiras para produtos de especial interesse do Brasil, como suco de laranja, carnes, calçados, têxteis" (Celso Amorim, op. cit., pág. 2).
Quem acompanha a Alca desde as suas origens sabe que o ministro Amorim está levantando problemas fundamentais. Analisei os documentos dessa negociação, parte dos quais é pública, em trabalho para o Instituto de Estudos Avançados da USP ("A Alca e o Brasil", Coleção Documentos, Série Economia, nº 18, Instituto de Estudos Avançados, Universidade de São Paulo, março de 2003).
Quem examinar com isenção e boa-fé esses documentos e as propostas dos EUA para a Alca só poderá concluir que estamos diante de uma negociação altamente problemática para o Brasil, que pouco oferece de positivo e que ameaça produzir novas e graves restrições para a definição de políticas de desenvolvimento em nosso país.


Paulo Nogueira Batista Jr., 48, economista, pesquisador visitante do Instituto de Estudos Avançados da USP e professor da FGV-EAESP, escreve às quintas-feiras nesta coluna. É autor do livro "A Economia como Ela É..." (Boitempo Editorial, 3ª edição, 2002).

E-mail - pnbjr@attglobal.net


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