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São Paulo, segunda-feira, 29 de setembro de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Efeito estufa

JOÃO SAYAD

As sondas afundam na neve macia, depois furam o gelo endurecido das camadas mais profundas. Avançam centenas de metros abaixo da calota polar, retirando amostras de água congelada milhões de anos atrás. A análise das amostras de gelo mostra como foi o clima da Terra milhões de anos atrás. Permite aos cientistas concluir que a temperatura média da Terra aumenta quando aumentam as emissões de monóxido de carbono (CO).
As emissões de CO estão aumentando -a temperatura média da Terra vai se elevar.
Não sabemos como o aumento se distribuirá: podem ser dias mais quentes ou noites menos frias, verões mais quentes ou invernos mais brandos, mais calor nos trópicos ou menos frio nas zonas temperadas, e assim por diante. A média vai aumentar -não se sabe como.
Quando a Fipe anuncia que a inflação passou de 0,5% para 0,6% no mês, a média dos preços aumentou. A gasolina pode ter aumentado 10%, e os outros preços, caído. O chuchu pode ter aumentado 1.000% por que não choveu, outros preços podem ter ficado iguais. Sabemos apenas que a média aumentou.
A análise dos índices de preços mostra que, quando a inflação é de 10% ao ano, a maior parte dos preços sobe 6% e alguns poucos sobem 14%. Se a inflação for 20%, a maior parte dos preços sobe 12% e alguns poucos preços sobem 28%. As distâncias em relação à média aumentam.
Além disso, quando o preço do chuchu sobe, é possível comer menos chuchu e mais abobrinha. Se o chuchu causou inflação de 10%, os consumidores não ficaram 10% mais pobres. Quando sobe o preço da energia elétrica, é possível economizar energia elétrica. Os índices de inflação superestimam o empobrecimento dos consumidores quando sobem. E subestimam quando cai. Não existe um índice de preços ideal nem teoricamente.
"A verdadeira taxa de inflação" não existe, assim como não existe a "verdadeira temperatura média" do mundo. Este verão quente da Europa pode ter sido o resultado do efeito estufa, ou simplesmente um verão mais quente determinado por Netuno, Éolo ou qualquer deus do clima.
Quando a taxa de juros é de 20% ao ano e a inflação é de 10%, a taxa de juros real será de 20 menos 6 para muitas empresas e de 20 menos 14 para poucas empresas. Muitos não poderão pagar os juros reais de 14 e poucos poderão pagar os juros reais de 6. Só o governo consegue pagar juros reais tão altos.
A idéia de taxa de juros reais decorre de outra idéia: de que a inflação é um fenômeno monetário e neutro, que afeta todos os preços mais ou menos da mesma forma. "Retirando" esse efeito geral, como se limpássemos uma calçada coberta de neve, sobrariam os efeitos reais, e, no caso dos juros, sobraria uma taxa de juros "real".
Mas a inflação não é uma camada de neve superficial sob a qual se esconde a calçada áspera na qual não se escorrega. Embaixo da inflação existem apenas variações de preços, e, embaixo da variação de preços, mais variação de preços. Assim como no pólo Sul, embaixo da neve há gelo, e, embaixo do gelo, mais gelo.
A inflação está indissoluvelmente misturada aos preços dos telefones, da eletricidade, da gasolina, do chuchu ou dos ônibus de Salvador. A inflação não é fenômeno monetário, como acreditavam Friedman e os brasileiros que inventaram a correção monetária.
Apesar disso, o Banco Central do Brasil acredita que a taxa de juros real de equilíbrio -isto é, a taxa de juros real que não provoca inflação- seja de 10%. Se a inflação for 5, a taxa de juros nominal deverá ser 15; se for 10, a taxa de juros deverá ser 20. O que é isso que o Banco Central chama de taxa de juros real? A taxa que reflete os aumentos de tarifas públicas e petróleo ou a taxa de crescimento dos salários do setor industrial que aumentaram menos?
Se o país cresce às vezes 3%, outras vezes 0%, quem poderá pagar juros reais de 10% ao ano? Ninguém, apenas o governo, que cobra impostos de quem está produzindo e redistribui os recursos para quem tem dinheiro ou dívida pública.
A conclusão do Banco Central se baseia na análise das taxas de juro e da inflação no período de 1999 até 2003. Em que sentido podemos falar em taxa de juros de "equilíbrio" nesse período tão instável? No Brasil, equilíbrio é tendência ao desequilíbrio?
Moeda ou dívida pública à prova de inflação ou com correção monetária é uma quimera, o porto seguro de quem quer ao mesmo tempo a tranquilidade da liquidez e a possibilidade de poder comprar o que quiser e quando quiser.
Ninguém consegue oferecer esse porto seguro, esse ativo financeiro tão confortável. Nem Júpiter. Só os governos brasileiros e à custa de todas as outras coisas de que precisamos e ele não pode nos dar.


João Sayad, 57, economista, é professor da Faculdade de Economia e Administração da USP. Escreve às segundas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail - jsayad@attglobal.net


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