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OPINIÃO ECONÔMICA
O Real e a realidade
PAULO RABELLO DE CASTRO
O vício nas ciências inexatas,
em sociologia ou em economia, é a tendência ao dogmatismo. O dogma é a verdade por imposição. É a certeza obtida em face da repetição, e não por obra da
verificação. Na impossibilidade
de conviver serenamente com a
dúvida, o homem cria o dogma.
Sociedades subjugadas por fortes
hierarquias cognitivas são mais
propensas ao dogmatismo. E o
Brasil, por azar, ainda não aprendeu a viver sem seus dogmas econômicos.
A repetição dogmática criou,
por exemplo, todas as virtudes da
meta inflacionária, que o Banco
Central tenta cumprir desde 1999,
para o bem da nossa moeda, o
Real. Para os dogmáticos, a meta
de inflação é a âncora do Real,
desde que o câmbio passou a um
sistema flutuante. Por meio do
"regime de metas de inflação", o
Banco Central, segundo consta,
não deixa os preços explodirem
porque a política de juros do Copom nos enquadra na meta
preestabelecida. O dogma consiste em acreditar piamente em que:
1) o índice de inflação (IPCA)
escolhido para medir a variação
dos preços é, de fato, o que melhor
reflete a corrosão do valor da
moeda;
2) a "meta" de corrosão ou inflação permitida para o ano seguinte é a "ideal" dentro das condições da conjuntura nacional e
internacional;
3) a "política de juros", determinada pelo Banco Central para fazer o índice chegar à meta, irá
corresponder ao que dela se espera em termos de eficácia e baixo
custo social.
Se olhado e analisado pelo prisma da realidade, o dogma do regime de metas de inflação não
passa de um mito. Já convivemos
com outros mitos no passado. Já
houve tempo em que se acreditava ser inalcançável o desenvolvimento econômico no Brasil se
não fosse acompanhado de muita
inflação. Hoje, no entanto, o dogma é diferente: "Não importa o
desenvolvimento, desde que não
haja inflação...".
Estamos quase chegando lá.
Conseguimos reduzir a taxa de
crescimento médio do país a
2,2%, nível próximo à esclerose
econômica. À custa da perda de
centenas de bilhões de reais em
produção não realizada por milhões de brasileiros, quase atingimos as metas de inflação fixadas
por apenas três pessoas no Conselho Monetário Nacional. Desde
1999, quando foi implantado o
novo regime, o Banco Central ficou perto de acertar duas metas
de inflação, em 1999 e 2000, mas
ficou muito além do limite superior (original) nos três períodos
seguintes. Neste ano, periga errar
de novo e ficar acima do limite
máximo de 8%. Para o ano que
vem, que ainda não começou, já
fez diferente: diante de uma meta
ainda mais apertada -4,5%-,
"flexibilizou-a", por sua conta,
para 5,1%. Fez como aquele aluno que, diante do teste terrível de
matemática, pediu "revisão de
prova" e "2ª época", antes mesmo
de conhecer as questões...
Não sabemos bem da qualidade
do regime brasileiro de metas de
inflação, salvo pelo dogma de
que, sem ele, estaríamos de volta
à selvageria inflacionária. Como
todo dogma, não é para discutir
muito, apesar do visível custo de
sua aplicação. Sabemos, entretanto, que a tal "política de juros", que hoje se confunde com
política monetária (por quê?), é
uma faca que despedaça o tecido
econômico, pois, além de concentrar a renda num país mal distribuído, bota mais lenha na dívida
pública e aumenta a dúvida do
mercado sobre a capacidade do
governo de continuar extraindo
sangue da sociedade para cumprir seus encargos financeiros no
futuro. Só por dogma dá para
acreditar que todos esses efeitos
deletérios foram computados e
devidamente considerados nas
equações do regime de metas de
inflação do nosso Banco Central.
A realidade é que o "regime de
metas", com-juros-na-cabeça, foi
soprado nos ouvidos da sociedade, que teme agora contestar o
dogma e ficar a pé, sem instrumento para controlar a besta da
inflação.
A besta, no entanto, adora reservas cambiais baixinhas e um
câmbio bem favorável à especulação, como está se conformando
neste final de ano. A besta também fica bem satisfeita com um
alto grau de atrelamento dos ativos a qualquer índice que reflita o
câmbio, como IGP (Índice Geral
de Preços), pois o efeito de realimentação de qualquer espiral especulativa será bem maior. E,
com certeza, a besta adora um
certo descompasso qualquer na
programação monetária, pois a
circulação da moeda é o "barato"
dela. Embora o Banco Central
nunca tivesse acreditado em controlar a moeda para conter a inflação ou para dar vela ao crescimento, seria bom também rever
essa agnosia.
A realidade do país do Real é
que, infelizmente, não temos ainda um bom e eficiente sistema de
administração macroeconômica.
O "regime de metas" está longe de
ser a resposta. O IPCA anual não
é um bom indicador. O IGP, como
indexador generalizado, é uma
tragédia. O próprio regime, baseado em revisões sucessivas da
meta, é a cara da nossa vulnerabilidade a fatos supervenientes.
Pior que todas essas insuficiências é apenas a nossa equivocada
certeza em torno da falta de alternativas para construir, para o
Real, uma nova realidade.
Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em
economia pela Universidade de Chicago
(EUA), é vice-presidente do Instituto
Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de
crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada
15 dias, nesta coluna.
E-mail -
rabellodecastro@uol.com.br
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