São Paulo, quarta-feira, 29 de setembro de 2004

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OPINIÃO ECONÔMICA

O Real e a realidade

PAULO RABELLO DE CASTRO

O vício nas ciências inexatas, em sociologia ou em economia, é a tendência ao dogmatismo. O dogma é a verdade por imposição. É a certeza obtida em face da repetição, e não por obra da verificação. Na impossibilidade de conviver serenamente com a dúvida, o homem cria o dogma. Sociedades subjugadas por fortes hierarquias cognitivas são mais propensas ao dogmatismo. E o Brasil, por azar, ainda não aprendeu a viver sem seus dogmas econômicos.
A repetição dogmática criou, por exemplo, todas as virtudes da meta inflacionária, que o Banco Central tenta cumprir desde 1999, para o bem da nossa moeda, o Real. Para os dogmáticos, a meta de inflação é a âncora do Real, desde que o câmbio passou a um sistema flutuante. Por meio do "regime de metas de inflação", o Banco Central, segundo consta, não deixa os preços explodirem porque a política de juros do Copom nos enquadra na meta preestabelecida. O dogma consiste em acreditar piamente em que:
1) o índice de inflação (IPCA) escolhido para medir a variação dos preços é, de fato, o que melhor reflete a corrosão do valor da moeda;
2) a "meta" de corrosão ou inflação permitida para o ano seguinte é a "ideal" dentro das condições da conjuntura nacional e internacional;
3) a "política de juros", determinada pelo Banco Central para fazer o índice chegar à meta, irá corresponder ao que dela se espera em termos de eficácia e baixo custo social.
Se olhado e analisado pelo prisma da realidade, o dogma do regime de metas de inflação não passa de um mito. Já convivemos com outros mitos no passado. Já houve tempo em que se acreditava ser inalcançável o desenvolvimento econômico no Brasil se não fosse acompanhado de muita inflação. Hoje, no entanto, o dogma é diferente: "Não importa o desenvolvimento, desde que não haja inflação...".
Estamos quase chegando lá. Conseguimos reduzir a taxa de crescimento médio do país a 2,2%, nível próximo à esclerose econômica. À custa da perda de centenas de bilhões de reais em produção não realizada por milhões de brasileiros, quase atingimos as metas de inflação fixadas por apenas três pessoas no Conselho Monetário Nacional. Desde 1999, quando foi implantado o novo regime, o Banco Central ficou perto de acertar duas metas de inflação, em 1999 e 2000, mas ficou muito além do limite superior (original) nos três períodos seguintes. Neste ano, periga errar de novo e ficar acima do limite máximo de 8%. Para o ano que vem, que ainda não começou, já fez diferente: diante de uma meta ainda mais apertada -4,5%-, "flexibilizou-a", por sua conta, para 5,1%. Fez como aquele aluno que, diante do teste terrível de matemática, pediu "revisão de prova" e "2ª época", antes mesmo de conhecer as questões...
Não sabemos bem da qualidade do regime brasileiro de metas de inflação, salvo pelo dogma de que, sem ele, estaríamos de volta à selvageria inflacionária. Como todo dogma, não é para discutir muito, apesar do visível custo de sua aplicação. Sabemos, entretanto, que a tal "política de juros", que hoje se confunde com política monetária (por quê?), é uma faca que despedaça o tecido econômico, pois, além de concentrar a renda num país mal distribuído, bota mais lenha na dívida pública e aumenta a dúvida do mercado sobre a capacidade do governo de continuar extraindo sangue da sociedade para cumprir seus encargos financeiros no futuro. Só por dogma dá para acreditar que todos esses efeitos deletérios foram computados e devidamente considerados nas equações do regime de metas de inflação do nosso Banco Central.
A realidade é que o "regime de metas", com-juros-na-cabeça, foi soprado nos ouvidos da sociedade, que teme agora contestar o dogma e ficar a pé, sem instrumento para controlar a besta da inflação.
A besta, no entanto, adora reservas cambiais baixinhas e um câmbio bem favorável à especulação, como está se conformando neste final de ano. A besta também fica bem satisfeita com um alto grau de atrelamento dos ativos a qualquer índice que reflita o câmbio, como IGP (Índice Geral de Preços), pois o efeito de realimentação de qualquer espiral especulativa será bem maior. E, com certeza, a besta adora um certo descompasso qualquer na programação monetária, pois a circulação da moeda é o "barato" dela. Embora o Banco Central nunca tivesse acreditado em controlar a moeda para conter a inflação ou para dar vela ao crescimento, seria bom também rever essa agnosia.
A realidade do país do Real é que, infelizmente, não temos ainda um bom e eficiente sistema de administração macroeconômica. O "regime de metas" está longe de ser a resposta. O IPCA anual não é um bom indicador. O IGP, como indexador generalizado, é uma tragédia. O próprio regime, baseado em revisões sucessivas da meta, é a cara da nossa vulnerabilidade a fatos supervenientes.
Pior que todas essas insuficiências é apenas a nossa equivocada certeza em torno da falta de alternativas para construir, para o Real, uma nova realidade.


Paulo Rabello de Castro, 55, doutor em economia pela Universidade de Chicago (EUA), é vice-presidente do Instituto Atlântico e chairman da SR Rating, agência brasileira de classificação de riscos de crédito. Escreve às quartas-feiras, a cada 15 dias, nesta coluna.
E-mail - rabellodecastro@uol.com.br


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