São Paulo, quarta-feira, 29 de novembro de 2006

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VINICIUS TORRES FREIRE

O custo marajá e outros mitos

Desperdício no setor público é grande, mas "gestão" e cobrança de "calotes" não fecham as contas

O CIDADÃO COMUM, para não dizer gente tida como informada ou "formadora de opinião", parece ter tanta dificuldade de compreender as dimensões dos dinheiros públicos como de imaginar, digamos, a extensão do universo, com seus bilhões de galáxias, cada uma com seus bilhões de estrelas. Descontado o exagero astronômico, ainda assim a compreensão de complexidades e grandezas envolvidas nas contas públicas costuma ceder lugar a idéias fantásticas a respeito dos motivos da falta de fundos para coisas elementares como médico, comida e professor. Não há dinheiro? Foi a mula-sem-cabeça que levou, ou o boitatá, ou a Cuca. No pensamento mágico da economia política, a Cuca aparece como o "marajá", como o político corrupto, ou coisas assim.
É evidente que o desvio de qualquer tostão público é criminoso. Mesmo dinheiros menores (em relação às grandezas astronômicas geridas pelos governos) podem por vezes evitar tantas mortes estúpidas, tantas milhares de desgraças pessoais.
Mas considere-se a conta dos "marajás" do Judiciário, o dinheiro que juízes e funcionários do Judiciário recebem além do limite legal, informação divulgada em parte ontem pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça). São 4.755 servidores a receber salários além do teto de R$ 22.111,25, dos quais 2.978 de maneira irregular.
Como o CNJ não divulgou a média do excesso de salários irregulares, mas apenas a média de todos os pagamentos acima do teto, não dá para fechar uma conta precisa do gasto indevido. Mas tal despesa é da ordem da centena de milhão de reais por ano. Um despautério.
Quanto exame pré-natal dá para fazer com esse dinheiro (as grávidas brasileiras não fazem o número de exames mínimo, morrem, perdem seus filhos, as crianças nascem doentes etc. Um horror selvagem)?
Quanta pesquisa científica deixa de ser feita por causa do desperdício? O "marajanato" judiciário tira a bolsa de uns 5.000 doutorandos por ano. Ou de umas 100 mil famílias do Bolsa Família. Junte-se a conta de desperdícios no governo, no Congresso, na licitação, na cartilha do Gushiken etc. e teremos milhares de vidas atrapalhadas, arrebentadas e perdidas por causa de desleixo, indignidades ou crime contra o público mesmo. Isto posto, é ingenuidade, desinformação ou safadeza explicar o grosso da carência de investimentos e despesas essenciais pela existência do marajá-saci ou do corrupto-Cuca. Duas das maiores despesas públicas, o INSS e os juros pagos pelo setor público, são da ordem de R$ 170 bilhões cada uma. Os subsídios federais (redução ou isenções de impostos) são da ordem de dezenas de bilhões de reais.
A despesa do INSS, sem que se mexa um dedo ou se dê um aumento de aposentadoria, cresce 4% ao ano. Um voto, o voto de um diretor nas reuniões do Banco Central, pode aumentar a conta de juros pela ordem dos bilhões anuais. Uma decisão populista do governo, de fazer investimento ao custo do aumento da dívida pública, pode multiplicar o tamanho da conta financeira.
A desconversa maior e séria, enfim, é sobre a origem e o destino do dinheiro arrecadado via impostos, e não sobre o "escândalo" corrupto do dia. Interessa saber como tal divisão de recursos é politicamente determinada: quem recebe o quê, de quem?
E os caloteiros do setor público, "sonegadores"? São, em boa parte, do setor público. No setor privado, muitos faliram, sumiram, não podem pagar. Algum dinheiro sempre se recupera, sempre é possível administrar melhor. Porém não será por aí, do dinheiro do calote ou do "marajá", que virá mudança econômica. Quando o governo começa a bater na tecla da "cobrança dos sonegadores", ou coisa assim, a fim de dizer de onde vai sair o dinheiro do investimento, é sinal de que começou a macumba.


vinit@uol.com.br

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