|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
VINICIUS TORRES FREIRE
O custo marajá e outros mitos
Desperdício no setor público é grande, mas "gestão" e cobrança de "calotes"
não fecham as contas
O CIDADÃO COMUM, para não
dizer gente tida como informada ou "formadora de opinião", parece ter tanta dificuldade
de compreender as dimensões dos
dinheiros públicos como de imaginar, digamos, a extensão do universo, com seus bilhões de galáxias, cada uma com seus bilhões de estrelas.
Descontado o exagero astronômico, ainda assim a compreensão de
complexidades e grandezas envolvidas nas contas públicas costuma ceder lugar a idéias fantásticas a respeito dos motivos da falta de fundos
para coisas elementares como médico, comida e professor. Não há dinheiro? Foi a mula-sem-cabeça que
levou, ou o boitatá, ou a Cuca. No
pensamento mágico da economia
política, a Cuca aparece como o "marajá", como o político corrupto, ou
coisas assim.
É evidente que o desvio de qualquer tostão público é criminoso.
Mesmo dinheiros menores (em relação às grandezas astronômicas geridas pelos governos) podem por vezes evitar tantas mortes estúpidas,
tantas milhares de desgraças pessoais.
Mas considere-se a conta dos
"marajás" do Judiciário, o dinheiro
que juízes e funcionários do Judiciário recebem além do limite legal, informação divulgada em parte ontem
pelo CNJ (Conselho Nacional de
Justiça). São 4.755 servidores a receber salários além do teto de R$
22.111,25, dos quais 2.978 de maneira irregular.
Como o CNJ não divulgou a média
do excesso de salários irregulares,
mas apenas a média de todos os pagamentos acima do teto, não dá para
fechar uma conta precisa do gasto
indevido. Mas tal despesa é da ordem da centena de milhão de reais
por ano. Um despautério.
Quanto exame pré-natal dá para
fazer com esse dinheiro (as grávidas
brasileiras não fazem o número de
exames mínimo, morrem, perdem
seus filhos, as crianças nascem
doentes etc. Um horror selvagem)?
Quanta pesquisa científica deixa
de ser feita por causa do desperdício? O "marajanato" judiciário tira a
bolsa de uns 5.000 doutorandos por
ano. Ou de umas 100 mil famílias do
Bolsa Família. Junte-se a conta de
desperdícios no governo, no Congresso, na licitação, na cartilha do
Gushiken etc. e teremos milhares de
vidas atrapalhadas, arrebentadas e
perdidas por causa de desleixo, indignidades ou crime contra o público mesmo.
Isto posto, é ingenuidade, desinformação ou safadeza explicar o
grosso da carência de investimentos
e despesas essenciais pela existência
do marajá-saci ou do corrupto-Cuca. Duas das maiores despesas públicas, o INSS e os juros pagos pelo
setor público, são da ordem de R$
170 bilhões cada uma. Os subsídios
federais (redução ou isenções de impostos) são da ordem de dezenas de
bilhões de reais.
A despesa do INSS, sem que se
mexa um dedo ou se dê um aumento
de aposentadoria, cresce 4% ao ano.
Um voto, o voto de um diretor nas
reuniões do Banco Central, pode aumentar a conta de juros pela ordem
dos bilhões anuais. Uma decisão populista do governo, de fazer investimento ao custo do aumento da dívida pública, pode multiplicar o tamanho da conta financeira.
A desconversa maior e séria, enfim, é sobre a origem e o destino do
dinheiro arrecadado via impostos, e
não sobre o "escândalo" corrupto do
dia. Interessa saber como tal divisão
de recursos é politicamente determinada: quem recebe o quê, de
quem?
E os caloteiros do setor público,
"sonegadores"? São, em boa parte,
do setor público. No setor privado,
muitos faliram, sumiram, não podem pagar. Algum dinheiro sempre
se recupera, sempre é possível administrar melhor. Porém não será
por aí, do dinheiro do calote ou do
"marajá", que virá mudança econômica. Quando o governo começa a
bater na tecla da "cobrança dos sonegadores", ou coisa assim, a fim de
dizer de onde vai sair o dinheiro do
investimento, é sinal de que começou a macumba.
vinit@uol.com.br
Texto Anterior: Infra-estrutura pode ter corte na alíquota de IPI Próximo Texto: Brasil crescerá 4% só em 2008, diz OCDE Índice
|