São Paulo, quarta-feira, 29 de dezembro de 2004

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ARTIGO

Juros baixos dos EUA inflam bolhas pelo mundo

JOHN PLENDER
DO "FINANCIAL TIMES"

Cobiça, euforia e a política do Federal Reserve se combinaram para causar algumas distorções notáveis nos mercados globais em 2004. Fuga para o lixo é a frase deselegante mas acurada que melhor capta o superaquecimento em propriedades residenciais, uma surpreendente compressão dos rendimentos no mercado de títulos e o retorno das commodities como um playground aventuresco para os grandes apostadores.
Com os juros reais em curto prazo no pós-bolha nos Estados Unidos ainda em território negativo depois que o Fed voltou a aumentar os juros, permanece a possibilidade de que as coisas borbulhem alegremente por algum tempo. E, enquanto a Ásia atrelar suas moedas ao dólar, as tendências indutoras de calor da política do Fed vão se estender amplamente.
Como é sempre difícil definir as bolhas, há espaço para uma agradável discussão sobre quais mercados estão meramente superaquecidos e quais estão borbulhando. A proliferação dos fundos hedge é especialmente interessante nesse sentido. Pode-se ter uma bolha em veículos de investimento coletivo?
Eu diria que qualquer coisa que o dinheiro persiga de forma irracional pode ser tema de uma bolha. E aqui há características típicas de bolha. Primeiro, a multiplicação dos fundos hedge é impulsionada pela demanda: os tolos abundam. A característica menos típica é a ausência de euforia no mercado. Tanto os investidores institucionais como os varejistas estão recuando para os fundos hedge em reação aos baixos retornos produzidos recentemente pelas administradoras de fundos, tanto ativas como passivas.
Uma coisa semelhante à falácia da composição está ocorrendo, porque, se os fundos hedge passarem a dominar o mercado, suas altas taxas garantem que os retornos agregados serão menores que antes, devido aos maiores custos de transação. Parte da loucura de os investidores darem dinheiro para os florescentes fundos hedge é que tantos deles seguem estratégias visivelmente semelhantes que estão deixando de arbitrar retornos maiores.
Alguns praticantes da "triste ciência" insistem em tentar retirar a graça das bolhas afirmando que os investidores são racionais, os mercados são eficientes e as bolhas são uma impossibilidade teórica. Um exemplo clássico é a tentativa de Peter Garber de explicar a mania de tulipas dos holandeses afirmando que o mercado estava funcionando eficazmente porque é difícil criar tulipas raras. Sua valorizações da "bolha" eram portanto perfeitamente racionais. E a bolha estourou quando se tornou fácil propagá-las. Assim, a maior oferta foi responsável pela queda dos preços.
Foi uma boa tentativa, mas não respondeu à pergunta de por que os preços das tulipas de variedades comuns perfuraram o teto e depois afundaram no piso.
Mais implacável ainda é Milton Friedman, que acredita que a especulação desestabilizadora é impossível porque as pessoas que constantemente comprassem na alta e vendessem na baixa seriam rapidamente eliminadas. Isso indica uma existência protegida. Alastair Ross Goobey, presidente do fundo Hermes, goza de um nicho no circuito de conferências explicando com apoio estatístico como os investidores institucionais habitualmente compram na alta e vendem na baixa.
O motivo pelo qual muitos investidores fazem isso é que, diferentemente dos fundos hedge, eles tentam minimizar seu risco comercial em vez de maximizar os retornos absolutos. Nesse sentido, é racional os investidores tirarem o dinheiro de administradoras ativas. Por isso, investir em fundos hedge pode ser falta de coisa melhor, e não algo puramente irracional. E os fundos tracker são os especuladores desestabilizantes máximos, porque a suposição implícita neles é que o nível existente no mercado é inerentemente "certo".

Visões literárias
Charles Kindleberger afirmou em seu esplêndido "Manias, Pânico e Crashes" que Dickens foi infinitamente inferior, em sua visão da agiotagem, a Trollope, Balzac e Zola. Ele está certo, de modo geral. A descrição de Melmotte, o fraudador de "The Way We Live Now", é maravilhosa; Balzac compreende o que são seus financistas palpavelmente sórdidos e cobiçosos; e Zola é sua personalidade forense habitual quando explora os truques do mercado de ações em "O Dinheiro". Em comparação, Dickens não dá explicação para a queda do sr. Merdle em "A Pequena Dorrit". Ele é visto como que pelos olhos de gentinha incompreensível e é um ogro unidimensional.
Mas eu defenderia Dickens em sua explicação das bolhas. Seu relato de como o pai de Nicholas Nickleby se arruinou em uma bolha reminiscente da mania financeira de 1825-6 resume perfeitamente a crença duradoura de que a especulação se destina a solucionar todos os problemas, independentemente de risco (a corrida para os fundos hedge é um eco disso, é claro). Sua conclusão é maravilhosa e atipicamente sucinta: "O curso da sorte foi contra o senhor Nickleby; uma mania prevaleceu, uma bolha estourou, quatro corretores compraram mansões em Florença, 400 ninguéns se arruinaram, e entre eles o senhor Nickleby". Assim ele também capta o lado insider/outsider de uma mania. E eu adoro seu discurso corporativo vitoriano na muito fraudulenta Companhia Metropolitana Unida de Bolinhos e Pães Quentes e Entrega Pontual. Não parece um ótimo negócio?


Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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