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São Paulo, domingo, 30 de março de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Minas não há mais

RUBENS RICUPERO

Você, caro leitor, eu, que escrevo de Genebra, as pessoas que nos cercam, pensamos todos que somos indivíduos "normais". Acreditamos que, após a tempestade, vem a bonança. Diante de uma guerra absurda, achamos que é um acesso temporário de loucura. Cedo ou tarde há de passar, como tudo passa, e voltaremos à "normalidade". Mas e se descobríssemos que a normalidade deixou de existir? Ou melhor, que o anormal virou normal, o preto tornou-se branco, o "ataque preventivo" substituiu a guerra como "ultima ratio"? Se, depois da "banalidade do mal" burocratizado e impessoal, começássemos a viver a banalização da guerra?
Como ficariam, então, os políticos e diplomatas que apostam numa reconciliação entre os ocidentais, após o conflito? E as autoridades econômicas, no Brasil e um pouco em toda a parte, esperançosas da retomada da economia mundial, de um retorno rápido aos mercados de capital? Sei que a hipótese parece absurda. É como uma novela suíça, depois filmada, sobre uma daquelas aldeias alpinas escondidas nas dobras das montanhas, mergulhada em escuridão durante os intermináveis meses de inverno. Um dia, alguém, "iluminado" por Nostradamus, anuncia que, a partir daquele ano, o sol não voltará mais. E se, do mesmo modo, o calor, a energia da paz deixassem de aquecer-nos, não para sempre, mas, digamos, por quatro ou cinco anos de inverno, a duração de um mandato renovado de presidente americano?
Absurdo, inverossímil, dirão vocês. Será de fato assim? Vivemos em tempos absurdos e, em dias como estes, absurda é a hipótese racional, razoável, a que pouco tem em comum com a natureza da época. Para ser absurda, a hipótese teria de estar em contradição com os homens, as condições e as idéias ou seria preciso que estes três elementos mudassem. Ora, os homens são os mesmos e, ao menos por enquanto, os moderados, favoráveis à diplomacia, à abordagem multilateral do consenso, estão mais por baixo do que nunca. As condições vêm se deteriorando há muito tempo, desde meados dos 90, quando as crises financeiras passaram a amiudar-se a intervalos de dois anos e os episódios de violência em larga escala começaram a emendar um no outro: Bósnia, Kosovo, 11 de setembro, Afeganistão, quase Caxemira, recrudescimento da Intifada e da repressão, Iraque. Nem o fundamentalismo islâmico, nem o terrorismo suicida, nem o conflito palestino-israelense desapareceram ou se atenuaram. Ao contrário, focos infecciosos aparentemente em vias de sarar como o Irã e a Coréia do Norte foram devolvidos à situação de ameaças.
Quanto às idéias, para quem não as conhece, o que não falta são livros, artigos, discursos sobre o que inspira a atual ofensiva. Elucubrações de lunáticos eufemisticamente chamados de neoconservadores ou doutrinas oficiais sobre segurança absoluta, ataque preventivo, superioridade militar permanente, exportação da democracia ocidental ao Oriente Médio, está tudo ali, nos documentos facilmente acessíveis na internet. Quando pela primeira vez ouviu-se o discurso sobre o "eixo do mal", pensou-se que era artifício de retórica, força de expressão. Ninguém acreditou que fosse o anúncio de decisão definitiva de atacar o número 1 da lista, idéia premeditada que nada, nem a ONU, nem os inspetores, nem os apelos do papa e dos aliados, nem as gigantescas manifestações de opinião pública conseguiriam impedir. A tendência agora é achar que foi só o Iraque, para exemplo e escarmento dos demais, como antes se julgava que seriam tão-somente os talebans e o Afeganistão. Tomara que seja verdade -mas e se não for?
O mundo desesperadamente necessita de reconciliação e paz para recolher e juntar os pedaços em que foi estilhaçado pela guerra. Está tudo em escombros, a ONU, para começar, mas também a União Européia, a aliança atlântica, a Liga Árabe, os vínculos com a Turquia, o apoio que faltou dos vizinhos imediatos, Canadá e México, dos países de maior peso da América Latina. Contudo, para reconciliar esse mundo disperso, não basta parar com a guerra, esta e as seguintes. É preciso que a ajuda humanitária e a reconstrução do Iraque se façam genuinamente por meio da ONU, edificando o consenso e o entendimento como bases de um sistema multilateral revigorado. Querer impor no grito a configuração do Iraque e do mundo após o conflito tornará impossível reconciliar os Estados Unidos, de um lado, a França, a Alemanha, a Rússia, do outro. Sem isso, as rachaduras atuais tendem a se tornar permanentes. Como imaginar, por exemplo, que seja possível, dentro de dois meses, reunir o G-8, em junho, em Evian, do outro lado do lago de Genebra, o presidente Bush vindo a um encontro na França, do qual Chirac é anfitrião e presidente? É viável, nesse clima, cogitar de avanços na reunião da Organização Mundial do Comércio, em Cancún, em setembro, em matéria de agricultura, tema no qual os países-chave são os Estados Unidos e a França?
Pode ser que as más surpresas da guerra ou da economia, as eleições americanas de 2004 transformem esse panorama. Se, para melhor, não sabemos, mas será certamente diferente. Não se poderá voltar ao que era porque esta guerra destruiu para sempre o que existia. Os poetas sabem que é impossível voltar para a casa paterna. Eliot dizia que o lar não é o lugar para onde se volta, mas o lugar do qual se parte. O José, de Drummond:
"Quer abrir a porta, / não existe porta; / quer morrer no mar, / mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais".
Só lhe resta, sozinho no escuro, marchar qual bicho-do-mato.
Para onde?


Rubens Ricupero, 66, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).

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