|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LUÍS NASSIF
O brasileiro do século
Não consta que Marcos
Valério tenha ido buscar
na história o know-how do seu
"valerioduto". Mas, ao afirmar
na CPI do Mensalão que "desde
Rui Barbosa" já havia práticas
análogas, talvez sem querer tocou em um nervo exposto da
historiografia nacional: Rui
Barbosa, o "Águia de Haia".
Provavelmente em toda a história do país não exista personagem com tantos defeitos gigantescos e tantas qualidades
enormes, que tenha sido tão
poupado pela intelectualidade
nacional. Recentemente, uma
revista elegeu-o "o brasileiro do
século". Os liberais o endeusaram por sua campanha "civilista" contra Hermes da Fonseca.
Os juristas, por sua visão de direitos individuais. Os "desenvolvimentistas" -como Celso Furtado- tinham uma visão extremamente benevolente do
"encilhamento", o portentoso
processo especulativo que quase
liquidou com a República e matou o desenvolvimento brasileiro por décadas.
O que encantava Furtado era
o fato de Rui ter enfrentado a
ortodoxia da época, que se pelava de medo de emissões desordenadas de moeda, podendo influenciar o câmbio. Rui decidiu
autorizar a emissão de moedas
na quantidade que atendesse às
necessidades da economia nacional. O câmbio seria decorrência desse objetivo maior. Com
base nessa crença -cujos seguidores eram denominados de
"papelistas"-, autorizou bancos privados a emitirem moeda
com lastro em títulos públicos
-não mais em ouro, como defendiam os "metalistas". Segundo seus defensores, o desastre do
"encilhamento" foi devido à falta de um banco central, na época, que controlasse os movimentos especulativos do câmbio.
Em 1965, saiu o primeiro livro
iconoclasta, revisando a sua
biografia -"Rui Barbosa: o
Homem e o Mito", de Raymundo Magalhães Jr. A edição está
esgotada. Pode-se lê-lo na biblioteca Mário de Andrade. Nos
últimos anos, a conduta pessoal
de Rui passou a ser mais bem
avaliada em trabalhos acadêmicos, na identificação das causas do desastre.
A idéia de permitir a emissão
privada lastreada em títulos públicos foi de Visconde de Ouro
Preto, último ministro da Fazenda do Império. Havia um
beneficiário claro, Conselheiro
Saraiva, dono do Banco Nacional; e um crítico exacerbado: o
jornalista Rui Barbosa.
Cai o regime, novo governo e o
grande crítico de Ouro Preto,
Rui Barbosa, é nomeado ministro da Fazenda. Onze dias depois da Proclamação, começou
a distribuir concessões a torto e
a direito e a preparar um novo
quase monopólio de emissão, a
ser entregue ao Conselheiro
Mayrink -adversário de Saraiva-, em um episódio que quase
levou à demissão todo o ministério Deodoro, tal seu teor de escândalo.
Com os benefícios recebidos,
Mayrink faz inúmeros lançamentos de ações no mercado de
empresas porcamente capitalizadas, criadas com o único intuito de dar golpe na praça. Rui
autorizou emissões sucessivas
adicionais de moeda, quase todas canalizadas para o movimento especulativo de Mayrink.
Ou seja, a expansão monetária
-que os economistas enxergam
apenas por meio da análise dos
grandes agregados financeiros- de perto era adrenalina
na veia de Mayrink, alimentando a especulação.
Rui deixou o país em ruínas,
fez negociatas com a banca inglesa, permitiu que os Estados
pudessem tomar empréstimos
externos com garantia da
União. Deixou o governo com o
país na maior crise da sua história e assumiu, de imediato, cargos em três companhias criadas
por Mayrink em pleno "encilhamento".
Anos depois, foi indicado pelo
Barão de Mauá para representar o país em uma conferência
internacional. Nela, o chanceler
da Argentina defendeu a tese de
que países credores não poderiam invadir países devedores
para cobrança da dívida. A
América do Sul e os emergentes
em geral ficam a favor da tese. O
civilista Rui Barbosa foi voto
contrário.
Rui morreu em 1º de março de
1923, como herói nacional. Um
estudante recitou em praça pública em Salvador: "Morrerás?
Não! Tua glória se não finda/
Oh! grande! Oh! nobre herói da
liberdade!/E mesmo morto viverás ainda!".
Vive até na memória remota
de Valério e nas lembranças que
as CPIs permitem evocar.
E-mail - Luisnassif@uol.com.br
Texto Anterior: Saiba mais: Plano pretende reduzir dívida e desvincular gasto Próximo Texto: Entrevista: Fazenda prepara nova fase da agenda microeconômica Índice
|