São Paulo, domingo, 30 de dezembro de 2001

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

OPINIÃO ECONÔMICA

O que restou do consenso de Tancredo?

RUBENS RICUPERO

Da quase unanimidade de 17 anos atrás sobre a estratégia externa, pouca coisa sobreviveu. O primeiro elemento a desaparecer, tragado pela crise da dívida, foi o que legitimava a abordagem pelos resultados: o crescimento rápido da economia. O segundo -a doutrina autônoma de defesa- não tardaria em ser vítima do colapso do desenvolvimento e da volta da democracia. Restava a política externa em sentido restrito.
Quando o candidato Tancredo Neves falava do consenso de todas as correntes sobre a política externa, referia-se não às diferentes variantes dessa política durante os 21 anos de governos militares, mas à sua última encarnação, que datava de Geisel. Em aspectos fundamentais, ela se diferenciava, quase a ponto de ser o seu oposto, das versões iniciais do período de Castelo Branco, não tanto quanto às prioridades dos "círculos concêntricos" mas com relação à obsessão com as "fronteiras ideológicas", à proposta gorada do chanceler Juracy Magalhães sobre a Força Interamericana de Paz, à participação na intervenção na República Dominicana. Episódio que não se inscreve nos anais mais gloriosos da nossa história, essa intervenção inaugurou a série de reviravoltas justificadas pelo anticomunismo, com apoio americano ostensivo ou implícito, que iria marcar a exacerbação da Guerra Fria no período de Johnson: o golpe contra Ben Bella na Argélia, a sangrenta sucessão de Sukarno na Indonésia, o golpe dos coronéis na Grécia. A culminação desse intervencionismo foi o atoladouro do Vietnã, que só não engoliu vidas de soldados brasileiros graças, em boa parte, à coragem do então deputado Afonso Arinos Filho e à ação oportuna do presidente da Câmara, Bilac Pinto, mobilizado por Afonso.
A diplomacia de Geisel e do seu chanceler, Azeredo da Silveira, reatara com a inspiração da efêmera política externa independente de Jânio, San Tiago Dantas e Araújo Castro e se distanciara da política de Castelo justamente por recusar que a lógica do alinhamento automático da Guerra Fria correspondesse sempre ao interesse brasileiro. A liquidação da hipoteca colonialista do apoio ao salazarismo, a clara opção pela independência de Angola, Moçambique, Guiné, o reconhecimento da China comunista, a ofensiva na África e no Oriente Médio, uma visão não-ideológica do conflito na América Central, a militância pelas teses de uma ordem econômica internacional mais justa, eram algumas das marcas dessa diplomacia. É verdade que, da mesma forma que a de Castelo, ela se articulava a dois componentes essenciais de um "projeto de país". Um deles, a doutrina militar própria, baseada na pesquisa tecnológica (nuclear, espacial, aeronáutica, naval), levando em determinado momento à denúncia dos acordos militares com os EUA. Mais importante, todavia, era o projeto de desenvolvimento, de características diversas da fase Campos-Bulhões sob Castelo Branco. Sustentado por investimentos públicos de grande porte, simbolizados por Itaipu e servindo-se de numerosas empresas estatais como a Petrobras e a Vale do Rio Doce (não esquecendo da Embraer, ponto de partida da exportação atual de aeronaves), era esse projeto, liderado pelo Estado, que condicionava e viabilizava tudo o mais.
Dando continuidade a essa política, o ministro Saraiva Guerreiro aperfeiçoou, sob Figueiredo, a dimensão latino-americana, um dos seus pontos fracos. Conduziu-a com mão de mestre no momento traiçoeiro da Guerra das Malvinas e, contando com o inigualável conhecimento do Prata e a competência negociadora do embaixador João Hermes Pereira de Araújo, resolveu em definitivo, no prazo de seis meses, o grave conflito Itaipu-Corpus, que envenenara as relações com a Argentina na gestão anterior.
Ao endossar em 1984 a "política externa levada a efeito pelo Itamaraty", o candidato Tancredo queria significar que muitas dessas teses eram caras à oposição ao regime militar e se originavam das correntes majoritárias antes de 1964. Algumas, como o projeto de desenvolvimento mediante a aliança dos militares, da burocracia e do empresariado nacional, deitavam raízes na Revolução de 30 e no governo Vargas, coincidindo com as aspirações dos vários ramos do nacionalismo brasileiro. Não admira, portanto, que o candidato dessas forças às eleições indiretas reivindicasse como própria a única bandeira do governo no ocaso que conservava amplo apelo popular.
A fim de tentar reconstituir hoje consenso desse tipo, seria preciso dispor de um projeto de desenvolvimento capaz de expandir o potencial de crescimento para além das taxas medíocres compatíveis com a excessiva dependência de uma instável poupança externa. Saber se esse potencial pode ser empurrado de menos de 3% para mais de 6% é a questão crucial que tem atormentado a evolução interna do governo nos últimos anos, provocando polêmicas e conflitos abertos, motivando ruidosas demissões de presidentes de bancos oficiais e de ministros do Desenvolvimento. Nenhuma dessas crises produziu desenlace definitivo, embora, na prática, tenha prevalecido a opção conservadora de não testar os limites do potencial de crescimento. Deve-se, no entanto, ao presidente que se tenham evitado decisões irreversíveis, como a radicalização da liberalização financeira várias vezes ameaçada por autoridades desse grupo predominante e que teriam nos levado a situação igual ou pior que a dos nossos vizinhos do Sul.
Parte também do chefe do governo a ofensiva para deslocar gradualmente o eixo da ação econômica, antecipando-se em impor a agenda sucessória, em vez de esperar que ela seja dominada pela oposição. Nesse sentido, a recente substituição do ministro do Desenvolvimento, o discurso de "Exportar ou Morrer", o ativismo para recuperar o saldo comercial correspondem, sem dúvida, a problemas reais tornados inadiáveis mas sinalizam igualmente que o pêndulo começa a afastar-se dos financistas e do Banco Central (ao menos durante a campanha) e a mover-se na direção para onde já se estava voltando a opinião pública. Constituem, ao mesmo tempo, peças inconfundíveis da articulação de candidatura oficial que provavelmente tentará redefinir novo consenso de estratégia externa para o Brasil sobre a base do retorno ao desenvolvimento.


Rubens Ricupero, 64, é secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento), mas expressa seus pontos de vista em caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda (governo Itamar Franco).

E-mail -
rubensricupero@hotmail.com



Texto Anterior: Tendências internacionais - Gilson Schwartz: 2002 será marcado por mobilização social global
Próximo Texto: Lições contemporâneas - Maria da Conceição Tavares: A vitória dos dinossauros
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.