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OPINIÃO ECONÔMICA
O que restou do consenso de Tancredo?
RUBENS RICUPERO
Da quase unanimidade de
17 anos atrás sobre a estratégia externa, pouca coisa sobreviveu. O primeiro elemento a desaparecer, tragado pela crise da dívida, foi o que legitimava a abordagem pelos resultados: o crescimento rápido da economia. O segundo -a doutrina autônoma
de defesa- não tardaria em ser
vítima do colapso do desenvolvimento e da volta da democracia.
Restava a política externa em
sentido restrito.
Quando o candidato Tancredo
Neves falava do consenso de todas
as correntes sobre a política externa, referia-se não às diferentes
variantes dessa política durante
os 21 anos de governos militares,
mas à sua última encarnação,
que datava de Geisel. Em aspectos
fundamentais, ela se diferenciava, quase a ponto de ser o seu
oposto, das versões iniciais do período de Castelo Branco, não tanto quanto às prioridades dos "círculos concêntricos" mas com relação à obsessão com as "fronteiras
ideológicas", à proposta gorada
do chanceler Juracy Magalhães
sobre a Força Interamericana de
Paz, à participação na intervenção na República Dominicana.
Episódio que não se inscreve nos
anais mais gloriosos da nossa história, essa intervenção inaugurou
a série de reviravoltas justificadas
pelo anticomunismo, com apoio
americano ostensivo ou implícito,
que iria marcar a exacerbação da
Guerra Fria no período de Johnson: o golpe contra Ben Bella na
Argélia, a sangrenta sucessão de
Sukarno na Indonésia, o golpe
dos coronéis na Grécia. A culminação desse intervencionismo foi
o atoladouro do Vietnã, que só
não engoliu vidas de soldados
brasileiros graças, em boa parte, à
coragem do então deputado
Afonso Arinos Filho e à ação
oportuna do presidente da Câmara, Bilac Pinto, mobilizado por
Afonso.
A diplomacia de Geisel e do seu
chanceler, Azeredo da Silveira,
reatara com a inspiração da efêmera política externa independente de Jânio, San Tiago Dantas
e Araújo Castro e se distanciara
da política de Castelo justamente
por recusar que a lógica do alinhamento automático da Guerra
Fria correspondesse sempre ao interesse brasileiro. A liquidação da
hipoteca colonialista do apoio ao
salazarismo, a clara opção pela
independência de Angola, Moçambique, Guiné, o reconhecimento da China comunista, a
ofensiva na África e no Oriente
Médio, uma visão não-ideológica
do conflito na América Central, a
militância pelas teses de uma ordem econômica internacional
mais justa, eram algumas das
marcas dessa diplomacia. É verdade que, da mesma forma que a
de Castelo, ela se articulava a dois
componentes essenciais de um
"projeto de país". Um deles, a
doutrina militar própria, baseada na pesquisa tecnológica (nuclear, espacial, aeronáutica, naval), levando em determinado
momento à denúncia dos acordos
militares com os EUA. Mais importante, todavia, era o projeto de
desenvolvimento, de características diversas da fase Campos-Bulhões sob Castelo Branco. Sustentado por investimentos públicos
de grande porte, simbolizados por
Itaipu e servindo-se de numerosas empresas estatais como a Petrobras e a Vale do Rio Doce (não
esquecendo da Embraer, ponto de
partida da exportação atual de
aeronaves), era esse projeto, liderado pelo Estado, que condicionava e viabilizava tudo o mais.
Dando continuidade a essa política, o ministro Saraiva Guerreiro aperfeiçoou, sob Figueiredo, a
dimensão latino-americana, um
dos seus pontos fracos. Conduziu-a com mão de mestre no momento traiçoeiro da Guerra das Malvinas e, contando com o inigualável conhecimento do Prata e a
competência negociadora do embaixador João Hermes Pereira de
Araújo, resolveu em definitivo, no
prazo de seis meses, o grave conflito Itaipu-Corpus, que envenenara as relações com a Argentina
na gestão anterior.
Ao endossar em 1984 a "política
externa levada a efeito pelo Itamaraty", o candidato Tancredo
queria significar que muitas dessas teses eram caras à oposição ao
regime militar e se originavam
das correntes majoritárias antes
de 1964. Algumas, como o projeto
de desenvolvimento mediante a
aliança dos militares, da burocracia e do empresariado nacional,
deitavam raízes na Revolução de
30 e no governo Vargas, coincidindo com as aspirações dos vários ramos do nacionalismo brasileiro. Não admira, portanto,
que o candidato dessas forças às
eleições indiretas reivindicasse
como própria a única bandeira
do governo no ocaso que conservava amplo apelo popular.
A fim de tentar reconstituir hoje
consenso desse tipo, seria preciso
dispor de um projeto de desenvolvimento capaz de expandir o potencial de crescimento para além
das taxas medíocres compatíveis
com a excessiva dependência de
uma instável poupança externa.
Saber se esse potencial pode ser
empurrado de menos de 3% para
mais de 6% é a questão crucial
que tem atormentado a evolução
interna do governo nos últimos
anos, provocando polêmicas e
conflitos abertos, motivando ruidosas demissões de presidentes de
bancos oficiais e de ministros do
Desenvolvimento. Nenhuma dessas crises produziu desenlace definitivo, embora, na prática, tenha
prevalecido a opção conservadora de não testar os limites do potencial de crescimento. Deve-se,
no entanto, ao presidente que se
tenham evitado decisões irreversíveis, como a radicalização da liberalização financeira várias vezes ameaçada por autoridades
desse grupo predominante e que
teriam nos levado a situação
igual ou pior que a dos nossos vizinhos do Sul.
Parte também do chefe do governo a ofensiva para deslocar
gradualmente o eixo da ação econômica, antecipando-se em impor a agenda sucessória, em vez
de esperar que ela seja dominada
pela oposição. Nesse sentido, a recente substituição do ministro do
Desenvolvimento, o discurso de
"Exportar ou Morrer", o ativismo
para recuperar o saldo comercial
correspondem, sem dúvida, a problemas reais tornados inadiáveis
mas sinalizam igualmente que o
pêndulo começa a afastar-se dos
financistas e do Banco Central
(ao menos durante a campanha)
e a mover-se na direção para onde já se estava voltando a opinião
pública. Constituem, ao mesmo
tempo, peças inconfundíveis da
articulação de candidatura oficial que provavelmente tentará
redefinir novo consenso de estratégia externa para o Brasil sobre a
base do retorno ao desenvolvimento.
Rubens Ricupero, 64, é secretário-geral
da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento),
mas expressa seus pontos de vista em
caráter pessoal. Foi ministro da Fazenda
(governo Itamar Franco).
E-mail -
rubensricupero@hotmail.com
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