São Paulo, domingo, 31 de janeiro de 1999

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LIÇÕES CONTEMPORÂNEAS
O Brasil em chamas


ALOIZIO MERCADANTE
O real forte desabou. Permitiu um estelionato eleitoral, viabilizando a reeleição de FHC no primeiro turno, mas expôs o país a um fulminante ataque especulativo que deixará um rastro de destruição em seus escombros.
Os banqueiros internacionais vinham construindo uma estratégia de ataque especulativo, explorando as graves inconsistências macroeconômicas da irresponsável estratégia de estabilização monetária com âncora cambial e juros elevados e não renovavam as linhas de financiamento para o país há algum tempo. Depois da crise da Rússia o país perdeu quase US$ 40 bilhões de "reservas" cambiais. A assinatura do acordo com o FMI e o ingresso de novos recursos deflagrou o ataque especulativo devastador, beneficiado pelo "vazamento" de informações privilegiadas que permitiu ganhos espetaculares para especuladores, em especial à véspera da desvalorização.
O governo ao tentar a tardia e desastrada desvalorização, acompanhado pelo oportunismo irresponsável de parte da equipe econômica, acabou perdendo toda a governabilidade sobre a política cambial e os principais instrumentos de política econômica.
A desvalorização cambial ultrapassou todas as expectativas oficiais, em menos de um mês o país perdeu mais US$ 10 bilhões de "reservas" cambiais e o FMI recusou a solicitação de antecipação de uma parcela dos recursos para permitir a flutuação "suja" do câmbio. O governo permanece acovardado e submisso a estratégia do FMI, que vem de um desempenho desastroso no sudeste asiático e Rússia e que concentra sua gestão na elevação das taxas de juros, vinculadas às metas de arrocho do crédito líquido estabelecidas no acordo e tão próprias de regimes de "currency board".
O governo acuado frente aos especuladores esboça uma precária tática de intervenção que deverá envolver a renegociação das metas com o FMI, a liberação da segunda parcela, associado a antecipação de receitas cambiais oriundas das privatizações, acompanhadas de grandes e generosos descontos, além da venda predatória do que resta de empresas estratégicas como Petrobrás (cujas ações de controle valem cerca de US$ 6 bilhões no mercado acionário), BB e CEF e muito provavelmente uma imensa garfada nos fundos de pensão dos trabalhadores. Concessões que aprofundam a desconstituição da nação.
A elevação das taxas de juros vai acelerando a dívida pública quase toda pós-fixada, além de ampliar perigosamente a inadimplência. E a desvalorização abrupta e descontrolada atinge um imenso passivo cambial a descoberto do Estado. A dívida externa pública, a dívida pública dolarizada que supera R$ 67 bilhões e permitiu a socialização dos prejuízos cambiais do setor privado com hedge em títulos públicos dolarizados, e a venda de mais de US$ 12 bilhões no mercado futuro pelo BB aprofundam a fragilidade financeira do setor público.
A saída desorganizada da desastrada política de âncora cambial contamina o sistema de preços e gera uma poderosa pressão inflacionária não apenas nos insumos e produtos importados como quer o governo, mas em todo setor de bens comercializáveis no exterior. Os exportadores tenderão a aumentar suas margens no mercado interno, porque terão menor pressão dos concorrentes importados. A recessão se aprofunda e encontrará um país mais desestruturado produtivamente, mas vulnerável financeiramente e com um mercado de trabalho mais deteriorado pelo desemprego do que tínhamos nos anos 80.
Não há mais resposta fácil a este cenário. As oportunidades perdidas de uma correção de rota com uma desvalorização controlada ficaram para a história econômica.
O governo não pode continuar acovardado e tão pouco insistir no aprofundamento da submissão incondicional à internacionalmente desacreditada política ortodoxa do FMI.
O país precisa reagir como já ocorreu em grandes crises econômicas a exemplo de 1929. Um amplo movimento de defesa da produção e emprego pode ter um papel decisivo de pressão sobre o governo.
Uma política emergencial de transição para um novo modelo de desenvolvimento sustentável exigiria um conjunto articulado de medidas corajosas.
Em primeiro lugar, defender as reservas cambiais e sustar o movimento especulativo de fuga de divisas com a centralização temporária do câmbio. A centralização permitiria ao Banco Central contingenciar os compromissos e iniciar um amplo processo de renegociação de dívidas, aliviando a política monetária de juros elevados.
A poderosa onda inflacionária que está se formando deveria ser enfrentada com a coordenação de expectativas e reativação das câmaras setoriais. Os trabalhadores metalúrgicos do ABCD, a partir da luta contra as demissões da Ford e sob a liderança de Luiz Marinho, abriram este caminho com a proposta de redução temporária de carga tributária para desovar os elevados estoques da indústria automotiva e iniciar a negociação da renovação da frota nacional. Esta é uma proposta setorial concreta para amenizar o impacto recessivo e inflacionário do descalabro da política econômica.
O BNDES com sua carteira de R$ 20 bilhões deveria reverter a prioridade de financiamento das privatizações para impulsionar um programa emergencial de substituição de importações e restituir linhas de financiamento para as exportações.
O aumento inexorável do desemprego deve ser combatido com programas de estímulo imediato a agricultura e ampliação da reforma agrária. A agricultura pode contribuir para a geração de divisas e o controle de preços sobre a cesta básica.
A construção civil residencial poderia ser retomada com o fim da TR e uma reorientação da CEF, além da abertura de frentes emergenciais de trabalho rural e urbano nas áreas mais críticas de desemprego associadas ao impulso da política de crédito solidário e apoio às cooperativas populares.
O Mercosul foi duramente impactado pelo desequilíbrio cambial. Deveríamos propor a constituição de uma câmara de compensação com linhas especiais de crédito compensatório, a exemplo da política de comércio exterior da Inglaterra na Segunda Guerra. A estratégia de integração latino americana é decisiva para fazer frente ao Alca e afastar propostas irresponsáveis e devastadoras como a dolarização da região.
A reforma tributária que reconstitua o pacto federativo, com uma estrutura mais justa e não regressiva, poderia simplificar e desburocratizar a estrutura produtiva e garantir uma política fiscal socialmente sustentável.
A atual falta de estratégia nacional empurra o país para uma moratória selvagem e submissa ao FMI ou concessões que terão desdobramentos históricos devastadores para o que resta de soberania nacional.
A desvalorização cambial a médio prazo pode abrir espaço para reativar exportações e o crescimento.
Denunciar o acordo com o FMI e centralizar o câmbio são medidas também de elevado custo econômico, mas indispensáveis no quadro de emergência histórica que o país se encontra. Esta nova atitude diante do ataque especulativo contra a moeda nacional, acompanhado da sinalização para uma saída criativa e de retomada do crescimento, orientadas por uma política de reconstrução nacional, será um caminho extremamente difícil, mas certamente muito mais generoso com o povo e o Brasil que o aprofundamento desta atitude de conivência e covardia com a desconstituição da nação brasileira.

Aloizio Mercadante Oliva, 44, economista e professor universitário na PUC e Unicamp, foi candidato a vice-presidente da República com Lula, é vice-presidente e deputado federal eleito pelo PT.



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