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São Paulo, sábado, 31 de maio de 2003

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OPINIÃO ECONÔMICA

Nem todo mercado é malandro

GESNER OLIVEIRA

O governo repetiu nesta semana o erro de várias outras administrações ao atirar indiscriminadamente contra os postos de gasolina, acusando-os de prática de cartel. A preocupação com a formação de cartéis é correta. Mas a forma utilizada está equivocada.
Na segunda-feira, o presidente Lula afirmou que "não adianta os produtores serem sérios e reduzirem os preços, não adianta o governo ser sério e propor a redução se há pessoas que acham que são malandros e, portanto, podem enganar os outros achando que ninguém vai perceber".
No dia seguinte, a ministra de Minas e Energia, Dilma Rousseff, anunciou que o governo passaria a calcular e divulgar um preço teórico da gasolina, diesel e gás de cozinha e que fiscalizaria as empresas que praticassem preços maiores que a tabela, com a providencial ajuda da Receita Federal e do Cade.
E, a exemplo daquilo que vários outros governos já fizeram no passado, ameaçou os inimigos com a aplicação da lei. Segundo a ministra, as "empresas terão a contabilidade virada ao avesso, e quem não repassar as reduções correrá o extremo risco de se incomodar bastante em todas as instâncias do governo federal".
Acusações tão genéricas, em relação a mercados tão diferentes entre si, espalhados pelos quatro cantos do país, estão fadadas a cometer sérias injustiças.
O regime típico no qual esses mercados operam é o da chamada concorrência monopolística. Trata-se de uma mistura de monopólio e concorrência. Há aspectos monopolistas porque certos atributos de um posto podem lhe conferir poder de mercado, como a boa localização em um cruzamento importante.
Mas é um poder reduzido porque a facilidade de entrada de novos concorrentes que existem em grande número inibe o exercício de preços sistematicamente mais elevados. Além disso, as condições de concorrência variam muito, pois são mercados locais, com inúmeras especificidades.
Isso não descarta a prática de combinação de preços, que caracteriza o cartel e deve ser punida. Mas isso vale para todos os mercados da economia e com muito mais razão para aqueles setores mais concentrados do que o de postos de gasolina, como os da maioria das matérias-primas para a indústria de transformação.
Além disso, os instrumentos utilizados são inadequados. A divulgação de uma tabela com a finalidade de "orientar" o consumidor não ajuda. Ironicamente, uma das dificuldades para a formação de um cartel é precisamente a falta de referência daquilo que deveria ser o "preço justo".
Quando o próprio governo, ainda que na melhor das intenções, procura substituir o mercado confeccionando uma tabela de referência, elimina-se, pelo menos parcialmente, um dos custos inerentes a um acordo de preços. Na prática, a mão pesada do governo termina por ajudar um eventual cartel.
Diferentemente daquilo que poderia parecer à primeira vista, os mercados concorrenciais são caracterizados pela grande variação de preços entre um concorrente e outro. Cabe ao consumidor a tarefa de exercer sua soberania, escolhendo os melhores e mais baratos e rejeitando os mais caros.
Em vez de uma tabela de referência, que lembra os velhos tempos de controle de preços, seria mais útil ao consumidor se o governo desse mais informação ao mercado. Algo possível, por exemplo, com uma melhor divulgação da pesquisa de preços de combustíveis da ANP (Agência Nacional do Petróleo), que precisaria ser ampliada e reformulada para se tornar mais representativa.
Em vez de ameaçar os postos com uma devassa, o governo deveria assegurar ao contribuinte e ao administrador de um modo geral processos administrativos céleres e sem nenhum tipo de pré-julgamento.
Destaque-se que cruzamentos com dados da Receita Federal não cabem em investigações antitruste, pois uma das principais fontes de informação do governo para combater cartéis é o próprio mercado. Para que a fonte não desapareça, é preciso assegurar pleno respeito à confidencialidade e ausência de cruzamentos dessa natureza.
Cachorro que ladra não morde. Em vez de gritar contra mercados relativamente concorrenciais como os de postos de gasolina, seria melhor preparar bem os instrumentos de combate a cartéis, fortalecendo os órgãos de defesa da concorrência com recursos materiais e humanos. Só assim será possível punir discreta mas exemplarmente os verdadeiros abusos do poder econômico.


Gesner Oliveira, 46, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia (Berkeley), professor da FGV-EAESP, sócio-diretor da Tendências e ex-presidente do Cade.

Internet: www.gesneroliveira.com.br
E-mail - gesner@fgvsp.br


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