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São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2003

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VISÃO EXTERNA

Robert Brenner, professor de história econômica, diz que país deveria decretar moratória e critica novo governo

Para especialista, política de Lula é "suicida"

MARCOS MACEDO CINTRA
DA EQUIPE DE EDITORIALISTAS

A política econômica implementada pelo governo Lula é "suicida". Se o Brasil entrasse em moratória, suas relações com o capital financeiro internacional provavelmente se tornariam "mais saudáveis".
Essas são algumas das idéias defendidas em entrevista à Folha por Robert Brenner, professor de história econômica da Universidade da Califórnia (EUA).
Para ele, Lula responde ao "legado de dívida e fragilidade externa" do governo FHC, aprofundando o seu programa. Sobre as reformas institucionais que estão na agenda petista, Brenner também é cáustico: "Parecem ser ainda mais autodestrutivas do que sua política macroeconômica".
Outra nota pessimista do estudioso, que dirige o Centro de Teoria Social e História Comparada de sua universidade, é sobre o fôlego da recuperação dos EUA.
O historiador publicou neste ano no Brasil "O Boom e a Bolha" (Editora Record), que o consolidou no debate contemporâneo sobre a economia mundial.
 

Folha - Até que ponto os estímulos do Fed (o banco central dos EUA) e do governo Bush conseguiram reanimar a economia?
Robert Brenner -
Desde o início da retração cíclica, no final de 2000, as autoridades americanas puseram em marcha estímulos econômicos sem precedente. O Fed baixou os juros em 5,5 pontos percentuais. O governo reduziu impostos e fez deslanchar os gastos militares. Com isso, o setor público saiu de um superávit fiscal de 1,4% do PIB em 2000 para um déficit superior a 4% em 2003.
Até o momento, esse impulso recorde trouxe pouco dinamismo. O investimento, a variável-chave da saúde econômica, continua a decair: o gasto com novas fábricas e equipamentos na primeira metade de 2003 caiu 12% abaixo do nível de 2000.
A intervenção do governo teve resultados desalentadores porque foi incapaz de responder aos problemas fundamentais: sobrecapacidade produtiva, baixa lucratividade na indústria e endividamento corporativo recorde.
O gasto dos consumidores, virtualmente sozinho, liderou a economia. Mas o crescimento dos dispêndios dos consumidores depende de uma inédita elevação do endividamento das famílias, que em sua maior parte se faz contra o mercado de ativos hipotecários.

Folha - A retomada do crescimento americano é sustentável?
Brenner -
Mesmo se uma aceleração significativa da atividade econômica se materializar, a sua sustentabilidade é incerta, pois dependerá dos mecanismos -expansão das dívidas das famílias e inflação de bolhas financeiras- que sustentam a economia americana desde o final de 2000.
Graças às últimas reduções de juros pelo Fed, o preço das ações inflou nos últimos meses. O mercado em alta desempenha papel relevante na melhora do clima financeiro. Porém os preços das ações estão aumentando acima dos lucros. Em junho, a relação preço/lucro da S&P 500 [que reúne as 500 maiores empresas americanas] alcançou 33 para 1, quando a média histórica é de 14 para 1.
Enquanto o valor das ações caiu US$ 6 trilhões entre 2000 e 2002, o estoque de imóveis expandiu US$ 3 trilhões. Isso gerou um "efeito-riqueza" análogo ao proporcionado pela valorização das ações entre 1995 e 2000. Em 2002, as famílias "extraíram" a soma de US$ 700 bilhões de seus imóveis [através do refinanciamento de hipotecas e garantia em empréstimos], o que foi indispensável para manter o consumo. Mas parece improvável que os preços dos imóveis possam continuar aumentando como nos últimos cinco anos ou que as taxas das hipotecas mantenham-se tão baixas.
Por causa do estímulo público, ao americano foi permitido manter seus gastos mesmo na retração cíclica, enquanto o resto do mundo foi obrigado a reduzi-los.
Até agora, os governos da Ásia têm ajudado a manter o dólar valorizado a fim de permitir o crescimento de suas exportações.

Folha - Os EUA serão capazes de liderar uma nova onda de crescimento mundial?
Brenner -
Paradoxalmente, o crescimento da economia mundial requer a deterioração dos desequilíbrios: o aumento do déficit em conta corrente dos EUA e do superávit das economias asiáticas e européias. Esse é o resultado de um quarto de século de austeridade econômica e abertura dos mercados de bens e de capitais, de acordo com o neoliberalismo.
A redução das taxas de crescimento das economias domésticas tornou a maioria das nações dependente de suas exportações e, portanto, do contínuo crescimento das importações americanas.
Os capitais, que estão fluindo para os ativos americanos para cobrir o explosivo déficit externo e manter o valor do dólar, nutrirá, direta ou indiretamente, as bolhas de ações, de imóveis e de títulos.

Folha - Quais as perspectivas da recuperação dos emergentes?
Brenner -
Graças à abertura aos fluxos financeiros globais, economias como a brasileira precisam ancorar seu crescimento na entrada de capitais estrangeiros. Entretanto essas economias têm limitada capacidade de atrair capital. São as economias centrais que determinam a demanda e a oferta de capitais em escala global.
As baixas taxas de juros nos países desenvolvidos estão levando os investidores a tomar posições mais arriscadas. Isso está impulsionando o fluxo de capitais para a periferia e promovendo um surto de crescimento, exatamente como na primeira mania dos "mercados emergentes" no início dos anos 90. É improvável que isso continue por muito tempo.
Se a expansão americana ganhar vigor, os mercados acionários se valorizarão e as taxas de juros, provavelmente, se tornarão bem mais altas, o que já pode estar acontecendo. Tais eventos exigirão dos países em desenvolvimento taxas de juros mais altas, salários mais baixos, cortes mais profundos no consumo, maiores superávits fiscais e venda de ativos nacionais a preços aviltantes a fim de manter o fluxo de capitais.
Se a recuperação americana não ocorrer, os países desenvolvidos continuarão patinando e podem-se esperar recessões ainda mais graves na periferia.
Isso sem considerar que os países em desenvolvimento "neoliberalizados" continuam muito vulneráveis às devastações produzidas pelas imprevisíveis, mas cada vez mais comuns crises financeiras internacionais.

Folha - O que pensa da política macroeconômica do governo Lula?
Brenner -
Essas políticas macroeconômicas hiperausteras do atual governo brasileiro representam uma continuação das desastrosas políticas neoliberais da gestão de Fernando Henrique Cardoso. Elas respondem ao legado de dívida e vulnerabilidade externa de FHC, aprofundando ainda mais o seu programa.
Mas a devastadora contradição dessa abordagem é clara. A fim de atrair investimento estrangeiro direto e capital de curto prazo, o Brasil tem de adotar a política que favorece os mercados financeiros internacionais e o FMI [Fundo Monetário Internacional]: superávits fiscais para pagar juros da dívida pública, taxas de juros altíssimas para debelar a inflação.
Tais políticas operam contra os requisitos do crescimento econômico. Deprimem o gasto privado em novas fábricas e equipamentos e o dispêndio público em infra-estrutura, pesquisa científica, serviços sociais etc. Diante disso, o mercado doméstico pode, na melhor das hipóteses, estagnar.
É pouco surpreendente que tais políticas, durante os anos 90, tenham propiciado reduzida melhora nos padrões de vida, declínio na taxa de investimento, colapso na balança comercial e na conta corrente e aumento do endividamento público e externo.
Tampouco surpreende que hoje a acumulação de capital no Brasil virtualmente inexista, que o desemprego seja maior que sob FHC, que o salário continue a cair e que a indústria tenha estagnado.
Sob tais condições, o capital externo entra no Brasil para explorar os juros altos ou para adquirir empresas a baixos preços, e não para investir na produção. Não é fácil compreender como o governo brasileiro pode persistir nessa macroeconomia suicida.

Folha - O que constrangeria o governo Lula a implementar política macroeconômica mais conservadora que a de FHC? Há alternativa?
Brenner -
O que compele o governo Lula a ser ainda mais conservador é o seu compromisso com os mercados financeiros internacionais e o consequente pagamento da dívida brasileira nos termos impostos pelo FMI.
A preocupação pode ser resumida da seguinte forma: se o Brasil repudiar esses compromissos, a punição dos investidores -o fechamento dos fluxos de capital- tornará a vida no Brasil ainda mais difícil do que é atualmente.
Economistas de todas as tendências compreendem que a única política viável nas condições recessivas vigentes seria estimular a demanda agregada mediante o aumento do gasto público e da queda das taxas de juros. Mas no Brasil assiste-se ao lamentável espetáculo de um governo respondendo a uma depressão profunda com políticas destinadas a contrair ainda mais a economia.
O governo brasileiro está em posição de renegociar os termos de sua dívida com o FMI. Ainda que o Brasil fosse levado à moratória, as suas relações com o capital internacional provavelmente se tornariam mais saudáveis.
Em 1998, quando o Brasil começou a aceitar condições onerosas impostas pelo Fundo, a Rússia entrou em moratória. Desde então, a economia russa vem melhorando, com um grande influxo de investimento estrangeiro direto.

Folha - O sr. defende a adoção de controles de capital?
Brenner -
Reintroduzir controles de capitais é condição mínima para a retomada do crescimento brasileiro. Sem esses mecanismos, os capitais deixarão o país ao menor sinal de instabilidade financeira doméstica ou do surgimento de melhores perspectivas no exterior. Pior ainda, o dinheiro estrangeiro sairá ao menor sinal de desenvolvimentos políticos progressistas, como ocorreu nos três meses que antecederam a ascensão de Lula à Presidência.
A despeito da pressão dos EUA e do capital internacional, China, Taiwan e Cingapura mantiveram controles de capital ao longo dos anos 90. Esses países não apenas atravessaram a crise asiática relativamente intactos, mas continuaram a atrair grandes volumes de investimento estrangeiro.

Folha - Como o sr. vê a eleição de Lula?
Brenner -
Talvez para a maioria dos eleitores de Lula, a questão principal fosse romper com o neoliberalismo e começar a enfrentar as injustiças sociais. Porém o governo Lula embarcou numa transição -que prepara o terreno para reformas sociais-, adotando política econômica e propondo mudanças institucionais em consonância com o FMI.
Pode-se ponderar, entretanto, se a implementação dessa política econômica não tornará mais difíceis as reformas sociais. As mudanças institucionais que o governo Lula espera introduzir parecem ser ainda mais autodestrutivas do que sua política macroeconômica. Parecem destinadas a enfraquecer politicamente a classe trabalhadora e os pobres, nos quais o governo terá de ancorar-se se quiser levar adiante suas reformas sociais contra a oposição do capital, dos privilegiados e dos meios de comunicação de massa.
Conceder autonomia ao BC fortalecerá os laços com o setor financeiro e com o neoliberalismo. O ataque às aposentadorias, supostamente para eliminar desigualdades, na prática, reduz benefícios dos servidores públicos, deixando-os mais vulneráveis.
O que é necessário, ao contrário, é ampliar esses benefícios e estendê-los a outros ramos de trabalhadores, a fim de aumentar a sua influência econômica e política. A propalada "modernização" dos sindicatos tem por princípio aumentar a "flexibilidade da força de trabalho". Mas isso pode apenas reduzir a capacidade dos trabalhadores de defender-se.
O governo Lula tenta conter as mobilizações de massa para não assustar o capital internacional. Porém, a menos que essas mobilizações se intensifiquem, a esperança por reformas sociais substanciais se tornará uma quimera.
Lula e seu governo oferecem poucas evidências de que querem incentivar essa luta por reformas sociais. Após tantos anos denunciando FHC por capitular à dependência e por acomodar-se ao "status quo", eles certamente devem algumas explicações.


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