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São Paulo, domingo, 31 de agosto de 2003

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ARTIGO

Agricultura na OMC pode ser armadilha

ROBERT HUNTER WADE
ESPECIAL PARA O "FINANCIAL TIMES"

Um ar de crise toma conta das semanas que antecedem a reunião da OMC (Organização Mundial de Comércio) em Cancún, no mês que vem. O que se diz é que a crise gira fundamentalmente em torno da agricultura. Os países em desenvolvimento estão exasperados com a relutância das nações desenvolvidas quanto a reduzir a proteção e os subsídios aos seus fazendeiros.
De sua parte, os negociadores comerciais dos países ricos vêm enfatizando que os países em desenvolvimento precisam fazer grandes concessões de abertura de mercado em outras áreas da agenda internacional de comércio e investimentos se desejam que os governos dos países ricos corram os riscos políticos da abertura de seus mercados agrícolas.
É certo que os países em desenvolvimento têm muito a ganhar de um melhor acesso aos mercados de produtos agrícolas dos países ricos e de uma redução do dumping de superávit agrário que estas nações praticam nos mercados externos. Mas há uma armadilha. A conquista de um melhor acesso aos mercados agrícolas pode aprisionar muitos dos países em desenvolvimento de maneira ainda mais firme ao papel de fornecedores de commodities, e fazer de seu crescimento econômico um refém dos mercados de exportações, nos quais eles terão de enfrentar termos de comércio cada vez menos favoráveis.
Os negociadores comerciais dos países em desenvolvimento deveriam estar tratando não só de um melhor acesso a mercados mas também de criar condições mais favoráveis à adoção de políticas industriais que permitam ampliar as bases industriais de seus países, para que escapem à armadilha do fornecimento de commodities.
O escopo para esse tipo de avanço foi severamente reduzido em razão dos três acordos da Rodada Uruguai: o acordo de propriedade intelectual vinculada ao comércio internacional (Trips), o acordo sobre medidas de investimento vinculadas ao comércio internacional (Trims) e o acordo geral de comércio e serviços (Gats). Esses acordos mostram de que maneira, em nome dos mercados abertos e do benefício mútuo, o jogo se tornou ainda mais favorável aos países desenvolvidos.
O Trips dá forte proteção aos detentores de patentes e direitos autorais nos países desenvolvidos. O Trims e o Gats poderiam ter sido redigidos na forma de uma lista de todas as políticas industriais e tecnológicas empregadas pelos governos capitalistas do leste asiático para fomentar suas indústrias nacionais, para que posteriormente fossem tornadas ilegais sob as regras da OMC.
Além disso, os acordos foram redigidos de maneira que os faz parecer "equilibrados" em termos dos direitos e obrigações dos países desenvolvidos e em desenvolvimento. Mas um estudo mais detalhado demonstra que as obrigações que se aplicam aos países em desenvolvimento são passíveis de cobrança, enquanto as obrigações "recíprocas" dos países desenvolvidos tendem a ser impossíveis de aplicar na prática.
No Trips, por exemplo, os países desenvolvidos aceitaram "transferir tecnologia", enquanto os países em desenvolvimento aceitaram adotar prazos mínimos de validade de 20 anos para as patentes, e admitir uma ampla gama de produtos, idéias e tecnologias como patenteáveis. Caso os países desenvolvidos não transfiram tecnologia, nada acontece e é improvável que sejam forçados a discutir casos desse tipo sob o mecanismo de resolução de disputas da OMC, e ainda mais improvável que os percam. No entanto, caso os países em desenvolvimento não acatem suas obrigações quanto às patentes, é muito provável que sejam alvo de sanções.
Em termos mais fundamentais, toda a idéia de "tratamento especial e diferenciado" para os países em desenvolvimento foi desaparecendo à medida que a OMC emergia do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), em 1995. Sob o Gatt, a idéia de tratamento especial e diferenciado legitimara a adoção de acordos sem reciprocidade, no sentido de que o acesso dos países em desenvolvimento a mercados podia ser melhorado sem que eles reduzissem as suas tarifas protetoras.
Quando a OMC foi criada, a idéia anterior foi alterada para significar apenas um período de ajuste mais longo para que os países em desenvolvimento implementassem políticas abrangentes de abertura de mercados. Só há um ponto final permitido.
A nova e atenuada idéia de tratamento especial e diferenciado não oferece espaço para regras internacionais capazes de permitir uma gama mais ampla de estratégias de desenvolvimento, incluindo diversas formas de assistência estatal a novas empresas e setores para o desenvolvimento de países que tentam se estabelecer no mercado diante da competição de concorrentes já estabelecidos em outros locais.
A atenuação do "tratamento especial e diferenciado" tem como efeito líquido remover a escada para os mercados, o que torna mais difícil aos países em desenvolvimento se equiparar aos desenvolvidos. Protecionismo e políticas industriais foram usados pelos países hoje desenvolvidos a fim de fomentar novos produtos e processos, aproveitando as sinergias entre a exportação e a substituição de importações. Eles ainda podem ser usados com efetividade hoje, por meio de aberturas de mercado calibradas de acordo com o desenvolvimento das capacidades produtivas, setor a setor. Os negociadores dos países em desenvolvimento em Cancún e nas reuniões posteriores deveriam estar coordenando seus esforços a fim de garantir maior latitude para as políticas de desenvolvimento de seus países, e não apenas um maior acesso a mercados.


O autor é professor de Economia Política na London School of Economics


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