São Paulo, Domingo, 09 de Maio de 1999
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ENTREVISTA
Resultados dependem da qualidade criativa e não do tempo gasto na atividade, diz Domenico De Masi
"Liberem o trabalho da obsessão"

da Reportagem Local

Confira abaixo a entrevista concedida pelo sociólogo italiano Domenico De Masi à Folha.

Folha - O sr. defende a idéia do trabalho concentrado em um espaço menor de tempo. Isso pode ser uma ferramenta contra o desemprego, sem afetar salários?
Domenico De Masi -
Hoje, em muitas famílias, o pai trabalha dez horas por dia, e o filho, também diplomado, está desempregado. Para criar trabalho, não basta incentivar os investimentos. Quando um empreendedor investe capital, já não compra mais mão-de-obra, mas robôs.
Os investimentos servem muito mais para criar produtos e serviços do que para originar trabalho. Para resolver o problema do desemprego, é necessário criar todo trabalho possível, mas, sobretudo, é necessário redistribuir o trabalho que já existe.
Os únicos países que possuem verdadeiramente uma baixa taxa de desemprego são a Inglaterra (que tem 22% de trabalhadores em meio período) e a Holanda (que tem 36% dos trabalhadores em meio período). Meio período é uma das possíveis formas de redistribuição de trabalho.
O salário não pode depender mais da quantidade temporal de trabalho, como acontecia na produção industrial de bens materiais em grande série. Agora, a maior parte do trabalho é intelectual, e o seu resultado não depende da quantidade de horas trabalhadas, mas da motivação e da qualidade criativa dos trabalhadores. Um trabalhador que tem uma atividade criativa trabalha 24 horas por dia.
Isso porque sua mente corre sempre ao encontro das idéias que é desafiada a produzir. Cada ano, nosso planeta produz 3% a mais. Portanto, todo ano a retribuição deveria aumentar na mesma proporção. Em vez disso, um número mínimo de pessoas (os chefes das organizações) se apropria de uma parte crescente de riqueza enquanto o poder aquisitivo dos outros diminui 1% ao ano.
Folha - O sr. costuma afirmar que as grandes empresas não são criativas. Por quê?
De Masi -
As grandes empresas perdem continuamente a sua criatividade porque a dimensão as obriga a se burocratizar. As grandes empresas são grandes burocracias: seus objetivos são incertos, o controle prevalece sobre a motivação, os chefes são burocratas que preferem controlar os processos a valorizar os resultados. A cadeia hierárquica é muito longa para que possam selecionar, valorizar e implementar as novas idéias.
A potência das grandes empresas depende somente da sua força de inércia e da sua capacidade de desperdício.
Seu pessoal é reduzido cerca de 4% ao ano. Portanto, todos aqueles que trabalham numa grande empresa vivem no eterno terror de ser demitidos. Quem vive no terror não consegue elaborar idéias novas. É um escravo, não um ser criativo.
Folha - Vemos hoje o crescimento do setor informal. Mais pessoas se dedicam a atividades em que são responsáveis diretas pelo resultado do trabalho. Essa tendência é positiva ou as condena à mesma lógica competitiva adotada pelas empresas?
De Masi -
O trabalho mudou substancialmente sem que percebêssemos. Hoje o trabalho criativo se confunde com o estudo e com a diversão.
A sociedade industrial concentrava todo o divertimento na infância, todo o estudo na juventude, todo o trabalho na maturidade e todo o repouso na velhice.
Hoje, ao contrário, é possível conjugar lazer, estudo, trabalho e ócio em cada momento da nossa vida. As novas tecnologias finalmente consentem isso.
Mas, para que possamos chegar a esse resultado de sabedoria e poesia, é preciso liberar o trabalho da obsessão do prazo e da competitividade destrutiva.
Folha - O sr. diz que os grandes criativos, como o cineasta Federico Fellini, tinham muito tempo para si próprios e que, por isso, realizavam grandes projetos. Isso é possível hoje em dia?
De Masi -
O nosso tempo de vida dobrou em relação ao dos nossos bisavôs. Se eles tinham tempo para amar, divertir-se, ler romances, trabalhar e fazer muitos filhos, por que esse tempo tem de faltar para nós?
Com relação a nossos antepassados, nós temos máquinas que nos permitem economizar tempo (desde o telefone até o avião e o correio eletrônico), máquinas para estocar tempo (do gravador à secretária eletrônica), máquina para enriquecer o tempo (o rádio, enquanto viajamos no carro ou enquanto fazemos os serviços domésticos), máquinas para programar o tempo ("timer", agendas eletrônicas).
Portanto, a sensação de que nos falta tempo deriva sobretudo da nossa incapacidade de planejá-lo e da tentação de preencher as horas disponíveis com uma gama exuberante de atividades.
Os grandes criativos têm a capacidade de se concentrar e dedicam grande parte de seu tempo à introspecção, ao amor, ao convívio e ao lazer.
Folha - Segundo a sua teoria, não sabemos o que fazer no nosso tempo livre e, por isso, nos dedicamos cada vez mais ao trabalho. Como isso acontece?
De Masi -
O trabalho ocupa agora menos de um sétimo da nossa vida. Mas tudo, a escola, a família, a empresa, a igreja, nos prepara somente para o trabalho. Ninguém nos ensina a cuidar de nós mesmos: dormir bem, amar bem, distrair-se, divertir-se, valorizar o tempo livre sem desperdiçá-lo na libertinagem, no tédio e na agressividade.
O ócio, para ser criativo, é uma arte difícil, à qual devemos ser encaminhados por mestres de vida como Sócrates ou como Adriano.
Folha - Por que muitas empresas ainda encaram como ócio o fato de seus funcionários tirarem alguns momentos do expediente para ler, estudar ou trocar idéias?
De Masi -
As empresas se formaram sobretudo em função da indústria, onde nasceu a organização científica do trabalho, que atinge seu pico no final do século 19 e início do 20.
A linha de montagem representou a obra-prima organizacional e constituiu um modelo para a sociedade. Na sociedade industrial, eram consideradas "trabalho" somente atividades executivas capazes de produzir riquezas.
Ainda hoje, por exemplo, a atividade de estudo de um aluno e a atividade doméstica de uma dona-de-casa não são consideradas "trabalho". Não criam salário.
Hoje grande parte do trabalho físico e executivo é delegada às máquinas; ao homem sobra todo o trabalho criativo, que precisa ser alimentado pelo estudo, pela discussão e pelo divertimento.
Mas as empresas pós-industriais, comportando-se como se fossem ainda industriais, vetam essas atividades indispensáveis.
Para introduzir a mentalidade industrial no mundo rural, foram necessárias duas gerações. Para introduzir a pós-industrial no mundo industrial, será necessária pelo menos uma geração.
Folha - Estudos mostram que o aumento de produtividade causado pela tecnologia não trouxe tempo livre para os trabalhadores. Pelo contrário, o trabalhador produz hoje, em uma hora, mais que no passado, só que seu tempo total de trabalho continua aumentando. O que acontece?
De Masi -
Na sociedade agrícola, a vida média dos trabalhadores não atingia os 40 anos. A maioria morria antes mesmo de chegar à idade da aposentadoria. Mas o trabalho agrícola está condicionado às estações do ano e, portanto, deixa muito tempo livre. Por isso as sociedades agrícolas tinham muitas festividades religiosas, e os ritmos eram muito lentos.
O trabalho da sociedade industrial foi regulado não mais pelas estações da natureza, mas pelo ritmo dos negócios e das máquinas. O tempo tornou-se dinheiro, e a eficiência (a quantidade de bens produzidos) tornou-se a medida de todas as coisas.
Na sociedade industrial, a vida foi rigidamente dividida em três fases: a primeira, destinada ao estudo e à preparação profissional; a segunda, destinada ao trabalho; a terceira, à espera da morte.
Durante a primeira e a terceira parte, cada indivíduo dispõe de muito tempo, mas não sabe o que fazer com ele. Na segunda parte, gostaria de fazer muitas coisas, mas não tem tempo suficiente.
Há algum tempo, os pobres trabalhavam muito, e os ricos ficavam na ociosidade, dedicando-se ao esbanjamento ou à política e às artes liberais.
Hoje é o contrário: os operários conquistaram o direito a parar de trabalhar no final da jornada. Empresários, dirigentes e chefes trabalham dez horas por dia e, com frequência, levam trabalho para casa nos fins-de-semana.


Tradução de Anastasia Campanerut



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