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Corrida

RODOLFO LUCENA - rodolfo.lucena@grupofolha.com.br

Senta a bota, corredor!

A prova de São Silvestre, ainda que tumultuada, suarenta e dolorosa, é também palco de meditação

Escalada para o último dia do ano, a São Silvestre é uma espécie de divisor de águas. Serve como balanço, teste e catarse: ao marcar o fim de um período, é também o prenúncio de um novo tempo.

Mesmo os que só apreciam a corrida de longe, sentados no sofá comendo pipoquinha, podem ter ali um momento de transcendência. Ou, pelo menos, de dúvida.

Vendo a turma suando ao sol, parecendo sofrer inimagináveis torturas, o espectador pode se perguntar o que aquela gente toda está fazendo lá.

Talvez, porém, a questão seja outra: por que eu não estou lá? Ou mais complicada ainda: o que estou fazendo aqui?

As dúvidas também rondam o corredor. Em muitos momentos, pensamos em desistir, sonhamos em estar em outro lugar, com sombra e água fresca. Perguntamos: afinal, vale a pena?

O poeta já respondeu: "Tudo vale a pena se a alma não é pequena", mas é sempre saudável questionar. Afinal, na correria dos dias -agora piorada pelo desvario das compras, a loucura do trânsito, a pressão para cumprir metas- pouco tempo sobra para que pensemos sobre nós mesmos, o que fazemos e o que queremos.

A São Silvestre, ainda que tumultuada, suarenta e dolorosa, é também palco de meditação. O novo percurso, que é inaugurado neste ano, de certa forma imita a vida -ou um novo emprego, um novo amor.

Larga-se sob os aplausos da multidão e os primeiros passos vão em terreno plano e tranquilo. De repente, surge um precipício. Lutamos para ficar de pé, buscamos equilíbrio no despencar e, com pernas trêmulas, enfim chegamos ao que parece um porto seguro.

Que nada! Logo vem uma curta subida, mais outra rampa. Sobrevivendo à montanha-russa (do asfalto, das emoções), somos premiados com a planície. Tal qual na maturidade, navegamos com serenidade e confiança.

Mesmo assim, há perigos na esquina. Quando o peito se acalma e a mente se acomoda, surge a subida da Brigadeiro, uma montanha no meio do caminho. O poeta guardou a pedra na memória, mas ao corredor (a todos que aqui vivemos) não é dada essa opção; há que enfrentar o desafio.

Chega ao topo, mas não ao final. Quando a estabilidade parece conquistada, de novo despenca lomba abaixo, já cansado e enfraquecido. É outra luta para não beijar o asfalto.

Depois de dores e solavancos, vislumbra a chegada. Atrás da curva, o Ano-Novo já brilha. Aí, meu amigo, não tem para ninguém. Na São Silvestre, na beira da praia, no parque ou no asfalto, é a hora. Senta a bota, corredor! Queima o chão e parte para o abraço, que o que termina vai começar. A vida não para.

RODOLFO LUCENA, 54, é editor do blog +Corrida (maiscorrida.folha.com.br), ultramaratonista e autor de "Maratonando, Desafios e Descobertas nos Cinco Continentes" (Record)

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