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Neuro

SUZANA HERCULANO-HOUZEL - suzanahh@gmail.com

Uso forçado e neuroplasticidade

Parece até mágica o que a fisioterapia alcança hoje; mas é uma mágica praticada pelo próprio cérebro

Até recentemente, a perda da fala ou dos movimentos de parte do corpo após lesões cerebrais era considerada um diagnóstico definitivo, irrevogável.

Graças à neurociência e à fisioterapia, não mais. Uma das grandes descobertas da neurociência na virada do século foi a capacidade de recuperação do cérebro, afinal muito maior do que se supunha, mas que só se materializa havendo uso insistente.

Não entenda errado: continua sendo verdade que, após infartos ou lesões traumáticas, os neurônios perdidos não são regenerados. Terapias com células-tronco, em vias de pesquisa e teste, são uma possibilidade de repor esses neurônios com ajuda externa e assim contar com mais matéria-prima para a recuperação do tecido.

Mas muito pode ser feito sem essa eventual ajuda externa. Tudo mudou a partir da constatação de que os neurônios que permanecem no cérebro, após lesões, têm uma enorme capacidade de assumir novas funções, ou seja, de se reorganizar funcionalmente.

Essa capacidade de reorganização é a tal da neuroplasticidade: uma característica intrínseca dos neurônios de se adaptar eternamente ao uso que fazemos deles. Assim melhoramos naquilo que fazemos e aprendemos novos conceitos, idiomas, instrumentos musicais, caminhos em outras cidades, maneiras de lidar com as pessoas. E assim também conseguimos reorganizar o próprio cérebro em caso de demanda.

Adaptar-se ao uso quer dizer, justamente, que a reorganização não é apenas uma questão de tempo: se não houver demanda e uso efetivo, essa reorganização não acontece, porque não há oportunidade para o cérebro testar e efetivar caminhos alternativos.

Essa foi a grande dica da neurociência -colocada em prática magistralmente pela fisioterapia no que se chama de terapia do uso forçado. Nada de "melhorar o que sobrou": em essência, essa terapia consiste em obrigar quem perdeu o uso da mão esquerda a... usar a mão esquerda; quem perdeu a fala, a falar. Simples assim (e, se preciso, apelando para a imobilização da mão "boa").

Soa vil à primeira análise, eu sei. Mas funciona que é uma beleza, se conduzida da maneira correta, com metas razoáveis e incentivos movidos a conquistas pequenas e graduais. E, claro, muita motivação. O que a fisioterapia hoje alcança às vezes beira a mágica, executada pelo próprio cérebro, desafiado pelas mãos de um profissional competente.

SUZANA HERCULANO-HOUZEL é neurocientista, professora da UFRJ e autora do livro "Pílulas de Neurociência Para Uma Vida Melhor" (ed. Sextante) e do blog www.suzanaherculanohouzel.com

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