São Paulo, quinta-feira, 01 de setembro de 2005
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Outras idéias

Anna Veronica Mautner

À sombra do controle remoto

Por que tanta gente ouve longas conferências ou aulas a respeito dos mais variados assuntos? Nos jornais e revistas encontramos minúsculos lembretes anunciando esses eventos. De onde vem esse hábito que vai se tornando parte do cotidiano de tanta gente? Avento uma hipótese que, se não explicar tudo, pode iluminar pelo menos uma parte. Trata-se de carência de falas consistentes, com começo, meio e fim, para substituir o estrago feito pela eletrônica.


Duas décadas de controle remoto modelaram nossa atenção, gerando essa ânsia de retorno aos contadores de histórias e de longas conversas sossegadas


Uma das idéias ricas da psicologia é a de "condicionamento operante". Se somos recompensados quando fazemos um gesto, inevitavelmente aumentaremos a freqüência desse gesto.
Não há nada que qualquer ser vivo (do homem às formas de vida mais simples) mais necessite do que controle sobre o meio que o rodeia. Querer controlar o meio se liga à sobrevivência tanto individual como da espécie. No caso dos homens, ela pode vir camuflada, pois vai conviver com processos simbólicos complexos. Não dá para negar que somos condicionáveis em nosso afã de exercer controle/poder.
Tenho prestado atenção há muito tempo no poder condicionante de certos legados da eletrônica em nossas vidas. Hoje controlamos quase tudo com o leve apertar de botões. Sete ou oito toques em botõezinhos e, do outro lado do mundo, soa um telefone. Ao receptor e ao emissor bastam um nadinha de informações e um outro tantinho de treinamento. Que mais poderíamos desejar do que atravessar céus e terras apenas pela força da vontade, manifesta num leve tocar?
Quero me concentrar num produto eletrônico que nos condiciona sem pedir licença. Trata-se do minúsculo e todo-poderoso controle remoto.
Os anos foram passando sem que cada um de nós se desse conta (não duvido que algum filósofo já tenha pensado nisso que estou escrevendo, mas eu não o conheço) de que estamos aqui querendo pensar na velocidade do zapear, que imprimimos, a toda hora, nas televisões e rádios. Meia frase, duas imagens, três compassos de música ao acaso e zape! Zapear é ter todo o poder na palma da mão. Com um leve toque, mudamos de paisagem ou de enredo. Somos condicionados, também, no nosso jeito de pensar. Sem querer, pulamos de um assunto a outro, como se o cérebro também estivesse ligado às pilhas do controle. Elaborar e pensar não funcionam na velocidade da luz, portanto não são zapeáveis. Já no e-mail, podemos voltar à questão anterior com um leve toque de mouse, o que é uma vantagem. Em meio a essa revolução, a fala e a escuta sofrem -sem falar na capacidade de pensar. Não prestamos mais atenção. A gente chega até a mandar e-mail para pessoas que estão ao nosso lado. Diz-se que é por respeito ao "outro", pois o e-mail você lê quando você quer, enquanto o telefone interrompe.
Percebo-nos desatentos. É esse condicionamento operante à intermitência que gera nossa fome por mais consistência oral e nos leva às conferências, aos grupos de estudo. Nossa carência é de relatos falados.
É surpreendente a afluência de público a aulas, conferências, seminários, mesas-redondas, painéis. A leitura pode emocionar, mas é muito diferente da emoção suscitada por conteúdos associados ao calor do som da voz humana. Os recursos eletrônicos puseram em jejum não apenas o ver mas, especialmente, o ouvir. A percepção auditiva foi literalmente impregnada pelo condicionamento operante.
Duas décadas de controle remoto, de mundo na palma da mão, modelaram nossa atenção, gerando essa ânsia de retorno aos contadores de histórias e de longas conversas sossegadas. Pagos ou gratuitos, de grande público ou de pequenos grupos, a sociedade dispõe de ouvintes para tudo quanto é tema, desde que bem contado. Condicionada a receber "bits" de informação, nossa mente clama por contadores de histórias. Quando parecia que nunca mais ninguém iria curtir uma longa história, eis que chega a rebelião da mente. Que bom. Não é fim de mundo. Mais uma vez, o homem vence a máquina.

ANNA VERONICA MAUTNER , psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, é autora de "Cotidiano nas Entrelinhas" (ed. Ágora)
@ - amautner@uol.com.br



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